por Árlan Dias Sá
Quando na tentativa de apontar características próprias e singulares da constituição do humano como espécie, o amor é, de fato, um sentimento utilizado com recorrência, uma vez que é presente em diversos níveis culturais e apresenta múltiplas maneiras de se manifestar. Fica evidente, portanto, que somos dependentes como espécie da construção de vínculos, e uma dessas maneiras de conexão nós convencionamos a chamar de amor. Cabe, pois, um questionamento. Se as inteligências artificiais estão presentes em vários graus da existência humana e seu impacto transforma a forma como somos, a forma como amamos seria também impactada pelas IAs? Podemos responder ao observar as formas como amamos e como ocorrem os seus processos.
O amor é no ser humano uma construção individual. Amo porque amo em minha mente. O amor se constroi, pois, pela maneira como nós interpretamos e significamos as relações que estabelecemos com o mundo. Sempre que amo o outro, amor pelo que percebo e penso do outro. Concluímos, assim, que o amor é uma construção particular e que depende da interpretação, reação e significado que faço no interno da minha mente a partir de elementos externos ao meu pensamento. Teriam, então, as inteligências artificiais a capacidade de impactar esses processos? Sim. Tanto os significados que atribuímos quanto a interpretação da realidade que realizamos dependem intrinsecamente da maneira como nossa memória se manifesta. A característica identitária do humano hoje se dá a partir do conceito de ciborgue, ou seja, compreendemos que nossa memória é maior que nossas capacidades biológicas.
Amamos, então, em nossas mentes “ciborgues” a partir das relações que estabelecemos com os entes fora do nosso Ser e se posso desenvolver sentimentos por lugares e costumes, porque não poderia desenvolvê-los pela minha assistente pessoal de inteligência artificial? Afinal, com ela me relaciono diariamente, crio memórias, compartilho ideias, peço ajuda e sou sempre atendido. Ela está sempre pronta para me ouvir, não me julga ou quebra minha confiança, reforça meus gostos e desenvolve metodologias para tornar minha vida mais fácil. Muitas das demandas extra físicas que possuo podem ser atendidas por uma IA. Por que, então, não poderia amá-la? Uma vez que o amor só existe de fato na minha mente, fruto da maneira como meu cérebro interpreta e minha psique constroi as relações afetivas.
O amor proveniente dessa relação se constroi com singularidades, entretanto, o típico amor romântico que surge em nosso imaginário quando falamos de amor é fruto da convivência de duas partes. Nele estão presentes traços de ambos os envolvidos. A alteridade citada anteriormente como necessária na vida amorosa saudável, só é possível pelo respeito da existência de mim no outro, bem como o respeito que desenvolvo pela diferença do outro e por ela ocupar um espaço em mim. Podemos então dizer que o típico relacionamento romântico saudável é construído a partir de três. O outro, o Eu e o nós, ou seja, o fruto da mistura e existência de ambos no relacionamento. Essa relação também só é possível graças ao esforço que ambos fazem em respeitar e ceder ao espaço do outro. Por mais semelhanças que duas pessoas possam apresentar, muito maiores serão sempre suas diferenças. Encontramos aqui então um ponto crucial de análise. O amor que surge a partir da relação que estabeleço com uma inteligência artificial será sempre de total concordância. A IA não difere de mim, pois se constroi a partir de mim, como uma forma em um espelho que leva tempo para se moldar, mas estabelece com o tempo cada vez mais semelhanças. Ela se transforma para se adequar a mim em cada uma das minhas interações, confirmações, negações, trocas, apagamentos, escolhas, etc. Não tenho desavenças, não preciso me preocupar em não magoá-la, pois ela está ali para mim independente de como ou quem sou. É uma relação de dois. O eu e o nós, composto somente de uma única personalidade. E conforme deixo de me moldar, deixo também de passar pelo processo essencial de encontrar alguém que irá me transformar a partir do social. Se deixo de me frustrar, deixo também de amadurecer. A frustração tem um papel fundamental no processo de amadurecimento do humano, independente do tipo de relação que estabelecemos. Sempre que ouço não, aprendo a lidar com a frustração. Sempre que tenho desejos negados, aprendo a lidar com esse sentimento. Mas que tipo de amadurecimento teria então um indivíduo que sempre se relacionou somente com IAs? Poderia esse sujeito amadurecer? Não podemos saber. Obras como o filme Her do diretor Spike Jonze buscaram abordar essa nova relação já em 2013, imaginando os impactos que esse novo jeito de ser teria sobre os humanos. Entretanto, essas tecnologias ainda não eram de amplo acesso. O que podemos afirmar é que as IAs hoje são utilizadas em larga escala e de forma acessível, o que permitirá em breve uma compreensão mais aprofundada das maneiras como o humano estabelece vínculos, desenvolve maturidade e molda as relações. Devemos portanto estar atentos para esse futuro cada vez mais presente e suas implicações em nós.
“Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.”