IA CONSTITUINTE DO SER DO HUMANO? | GEN #03


Quando novos conhecimentos, bem como técnicas e ferramentas provenientes dele tornam-se populares e acessíveis, ganha espaço na cultura da sociedade as características identitárias das pessoas que a compõem. Podemos exercitar a reflexão identificando como exemplo disso a agricultura. O ato de plantar é derivado de um conhecimento, bem como as ferramentas para que essa prática torne-se mais fácil e eficiente. As pessoas que se apropriam desse conhecimento e realizam essa atividade passam a ocupar um novo espaço na estrutura que compõe a sociedade que habitam, pois, os agricultores. Esse grupo passa, então, a desenvolver técnicas e conhecimentos que transformam também a própria sociedade, como por meio da política estabelecer um novo comportamento social. Podemos citar como exemplo dessa mudança comportamental a agricultura de regadio desenvolvida pelos egípcios que, às margens do Nilo, desenvolveram técnicas para tornar as enchentes do rio uma ferramenta à favor da sua agricultura. Somente o conhecimento para se fazer, nesse caso, não bastou, uma vez que esse tipo de prática necessitava da colaboração de toda sociedade (mesmo os não agricultores) para que fosse possível existir, como funcionários públicos, engenheiros, construtores, astrônomos e até o próprio Faraó. Essa teia entrelaçada de colaboradores se construiu a partir da necessidade de um grupo que desenvolveu uma técnica a partir de um conhecimento dentro dessa sociedade. Entretanto, no momento que passou a funcionar, transformou de forma direta ou indireta as identidades dos agricultores, mas também da sociedade como um todo. Através desse labor, o grupo passou a identificar-se e classificar-se como conhecedores e beneficiários dos frutos do plantio. O que por sua vez modificou a forma como aquela sociedade se organizava economicamente e, com isso, sua relação com os demais povos, transmutando ainda mais profundamente a identidade daquele grupo. 

As consequências também se tornam evidentes naquilo que perde espaço dado o novo conhecimento desenvolvido. Nesse caso, junto da agricultura desenvolveu-se a pecuária. A domesticação de animais possibilitou o controle da produção e gestão do consumo de carne animal. Com essa técnica se desenvolvendo, a caça perde espaço como habilidade econômica fundamental e passa a ocupar uma função secundária na subsistência. Os caçadores, então, ressignificam sua identidade, bem como a identidade daquele grupo pela sua nova relação com a caça. Como analogia a essa questão, podemos imaginar uma sacola de bolas de gude, quando uma nova bola surge em meio às outras, desencadeia um movimento de todo o grupo para acomodar o novo elemento, transformando a estrutura do todo pelo deslocamento em maior ou menor grau do conjunto. 

Em alguns casos, elementos deixam de existir por se tornarem defasados dadas as novas capacidades e condições da inovação técnica e de ideias. Como exemplo, podemos imaginar a profissão de cobrador de ônibus. No momento que pagamentos por cartões ou digitais se tornam populares e acessíveis, gradativamente sua função deixou de ser necessária, passando a ser extinta quando culturalmente essa prática se estabeleceu, com seu desaparecimento também construiu-se uma nova característica identitária daqueles que usam transporte público, ou seja, a prática de andar com o cartão de pagamento do ônibus ou com uma ferramenta digital de rápido acesso para poder usufruir do transporte. Os motoristas também transformaram sua função, agora ficando responsáveis de forma exclusiva pela gestão do transporte e solução de possíveis problemas com o pagamento. A sociedade também mudou, construindo locais para emissão e abastecimento dos cartões de transporte, bem como desenvolvendo aplicativos para facilitar esse cadastro e abastecimento. Em suma, várias transformações sociais ocorreram que impactam em maior ou menor grau as nossas vidas por uma mudança no transporte público. 

É verdadeiro, também, para o presente ensaio que a magnitude do conhecimento e suas implicações têm relação proporcional à transformação que seu surgimento desencadeia na sociedade. A escrita é um exemplo direto disso, uma vez que seu surgimento modificou a forma como a sociedade se organiza a nível político, econômico, jurídico, cultural e etc. Enquanto o clipe de papel teve um impacto reduzido na comunidade humana bem como sobre sua identidade. Quais impactos na nossa identidade como humanidade tem, então, as inteligências artificiais? Essa pergunta, talvez, só tenha resposta no futuro. O que podemos vislumbrar no presente, pois, trata-se da magnitude do impacto das IAs sobre a existência humana. 

Aqui então se encontra a lente do Ialoceno. Nossa compreensão da magnitude dessa transformação, bem como percepção da reconfiguração cultural e identitária humana necessita do esforço consciente para “usar” lentes que evidenciem esses processos. O conhecimento sobre a origem das IAs bem como sua estrutura de funcionamento é indispensável para que essa leitura da realidade seja possível, entretanto, o pensamento crítico sobre processos e implicações assume, novamente, o papel de protagonismo nesse novo momento histórico humano. As IAs ocupam espaço em muitas dimensões das manifestações humanas hoje e em cada uma dessas camadas nossa identidade transmuta-se. Relações profissionais, pessoais, gerenciamento de estoque, estratégias de vendas, pesquisa de público, organização do lazer, construção de relatórios, sondagem de ideias, curiosidades rápidas, pesquisas profundas, construção de logo, escolha de cor para identidade visual, construção de treinos físicos, acompanhamento da evolução física, entre outras virtualmente infinitas práticas humanas estão se transformando com as IAs, logo, também mudam a forma como se constituem identitariamente no humano que as pratica. Seja por práticas cotidianas ou por trabalhos sistemáticos, a IA é, hoje, parte constituinte da identidade humana.