LINGUAGEM ARTIFICIAL? | ENSAIO #07

por Árlan Dias Sá

A linguagem ocupa, desde sempre, um lugar central na reflexão filosófica. Ela não é apenas um meio de comunicação, mas condição constitutiva do humano, aquilo que possibilita o pensamento, a sociabilidade e a sua própria experiência no mundo. Hoje, contudo, as inteligências artificiais colocam em questão essa herança milenar ao se mostrarem capazes de manipular, reproduzir e até criar discursos de maneira convincente. A questão imediata que se abre é dupla: em que medida tais sistemas compreendem a linguagem e até que ponto essa compreensão pode ser comparada à humana? Mas ainda mais urgente se mostra a seguinte questão: de que modo o uso das inteligências artificiais impacta nossa linguagem?

Como de costume em nossos esforços investigativos, façamos primeiro um percurso cronológico que servirá de referência aos pontos de destaque e subsídio às nossas conclusões.

Começando da Grécia, Aristóteles dedicou grande parte da sua obra a compreender e desvendar as características mais essenciais da nossa existência. Através dessa investigação ontológica o autor definiu o ser humano como zoon logon echon (animal dotado de logos), indicando que a linguagem e a razão são constitutivas da vida em comunidade e, consequentemente, do humano, definido pelo mesmo também como um animal social. Não se trata, então, apenas de transmitir sons, mas de deliberar, narrar e pensar em conjunto […] O homem é o único animal que fala, e o falar é função social” (MARÍAS, 2004, p.92). 

Heidegger, séculos depois, radicaliza essa perspectiva ao afirmar que: “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam.” (HEIDEGGER, 2010, p. 8). Não somos donos da linguagem, mas nela habitamos e, de certo modo, é ela que fala através de nós. Essa concepção mostra que não pensamos fora da linguagem. Existir implica ser atravessado por palavras, significados e símbolos. É nessa dimensão ontológica que se diferencia radicalmente a experiência humana das construções algoritmo-probabilísticas das linguagens pelas inteligências artificiais, que permanecem desprovidas de intencionalidade.

A abordagem lógica também fornece ferramentas poderosas para a crítica sobre o poder da linguagem de revelar, mas também de ocultar. A linguagem instaura categorias, define o que é visível e deixa fora do horizonte o que não se pode nomear. O primeiro Wittgenstein afirma: “Os limites da linguagem (e, portanto, do pensamento) são os limites do mundo, os limites do mundo são os limites da linguagem" (2001, p.103). Isso significa que a linguagem, ao mesmo tempo em que abre horizontes, também delimita fronteiras. Mais tarde, em suas Investigações Filosóficas, em sua segunda fase, o autor amplia essa compreensão ao mostrar que: “O termo "jogo de linguagem" deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (1999, p.35). A linguagem, então, só adquire sentido através dos “jogos de linguagem” que estão inseridos em formas de vida. Essa noção mostra-se crucial para pensar a inteligência artificial, uma vez que tais sistemas podem imitar jogos de linguagem, mas não partilham a forma de vida que os torna significativos.

Em uma abordagem interdisciplinar do tema, nos direcionamos agora para Lacan, uma vez que sua psicanálise aprofunda ainda mais essa diferença e pode fornecer outras ferramentas para iluminar nosso caminho. Para ele, o sujeito não apenas fala, mas é falado pela linguagem. Nossa identidade constitui-se no tecido simbólico, nas narrativas que nos precedem e atravessam. Lacan aponta que: “o inconsciente é o discurso do Outro” (1998, p.555). O inconsciente, desse modo, é estruturado como linguagem e nos situa numa relação constante com esse Grande Outro através da lei, da cultura e da ordem simbólica que precede o sujeito e o constituem. A linguagem assume, então, característica causal na construção do sujeito. A IA, por outro lado, manipula signos sem inscrição subjetiva: não há historicidade, afetividade ou corporeidade. Seu discurso carece do que constitui a fala humana, ou seja, a relação com o inconsciente, a alteridade e a experiência encarnada. É nesse ponto que reside, segundo as ideias de Lacan, a diferença essencial entre nós, que habitamos a linguagem, e as IAs, que apenas a percorrem como superfície de dados.

O desenvolvimento e as demonstrações recentes de sistemas de processamento de linguagem natural impressiona pela fluidez das respostas, pela capacidade de imitar estilos e pela produção de textos plausíveis. Entretanto, é preciso analisarmos filosoficamente essa competência. Podemos destacar três pontos que definem o modo de ser das IAs. Como primeiro ponto, a ausência de intencionalidade: as IAs não falam de algo nem para alguém, apenas calculam probabilidades de enunciados a partir de bancos de dados. Como segundo ponto, a carência de horizonte hermenêutico: não há vivência, historicidade ou contexto existencial que dê densidade ao que é dito. Como terceiro e último ponto, a neutralidade ilusória: as IAs carregam em seus dados os vieses de quem as programou e do material de onde aprenderam, sem consciência crítica desses processos.

Desse modo, o discurso das IAs é uma simulação convincente, mas não uma fala no sentido pleno. Trata-se de uma performance técnica que, embora útil, permanece distante da experiência simbólica e ética que constitui a linguagem humana.

A dimensão ética da linguagem, destacada por Levinas, é talvez o ponto mais decisivo nesta análise. Para ele, falar é sempre encontro com o outro, exposição e responsabilidade, como destaca o autor: “Dizer é aproximar-se do próximo, «dar-lhe significação» (...) o sentido ético de uma tal exposição a Outrem pressuposto pela intenção de fazer sinal - e mesmo pela significação do signo - é, desde já, visível” (LEVINAS, 2011, p.68). A linguagem é antes de tudo relação ética, anterior até ao ontológico. Na inteligência artificial, esse eixo se faz inexistente de ambas as partes, o que se apresenta é uma funcionalidade algorítmica, incapaz de sustentar uma relação genuína de alteridade.

A reflexão filosófica sobre a linguagem desvela sua essência enquanto condição, limite e possibilidade. Condição, porque estrutura o humano. Limite, porque define fronteiras do discurso. E possibilidade, porque abre espaço para a alteridade e para a transformação. As inteligências artificiais, embora demonstrem notável capacidade de manipular a forma da linguagem, permanecem restritas ao plano da simulação técnica. Elas não compreendem, não experienciam, não assumem responsabilidade nem são impelidas eticamente. O risco contemporâneo é confundir performance algorítmica com fala humana, reduzindo a linguagem a um mero cálculo de probabilidades e suspendendo a criticidade sobre o discurso.

Fica evidente, desse modo, a necessidade de manter viva a riqueza da linguagem ao fortalecer e evidenciar sua dimensão simbólica, histórica e ética. Isso implica reconhecer que, por mais sofisticadas que sejam, as inteligências artificiais não habitam a “casa do ser”. Elas podem percorrer suas paredes, mas não viver nelas. A pergunta que surge sob as lentes do Ialoceno, então, é: qual o impacto das inteligências artificiais na dimensão simbólica, histórica e ética da linguagem humana? 

É a faculdade de falar que faz o homem como homem. Este traço é o perfil de seu ser.
— HEIDEGGER, 1979, p. 191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. rev. São Paulo: Centauro, 2005. 1. reimpr. 2010.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LEVINAS, Emmanuel. De outro modo que ser ou para lá da essência. Tradução de José Luis Pérez e Lavínia Leal Pereira. Revisão científica e apresentação de Cristina Beckert. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.

MARÍAS, Julián. História da filosofia. Prólogo de Xavier Zubiri; epílogo de José Ortega y Gasset. Tradução de Claudia Berliner; revisão técnica de Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. Introdução de Bertrand Russell. 3. ed. Texto bilíngue: alemão-português. São Paulo: Edusp, 2001.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).