por Felipi Okada
"O mito de Sísifo na era da inteligência artificial" – Charge de Carlos Sekko, 2025.
Nos dias de hoje, é comum vermos a inteligência artificial (IA) ser vendida como uma promessa mágica em que a automação, otimização e ganho de escala nos aliviariam das atividades mais desgastantes. Entretanto, dentro das empresas, o que se percebe é um cansaço crescente, silencioso e, muitas vezes, disfarçado de entusiasmo por inovação. A cada nova ferramenta, a cada novo modelo, a cada nova linguagem, é como se o mercado nos sussurrasse: “é melhor você acompanhar… ou será deixado para trás”.
Nesse contexto, Byung-Chul Han, no livro A Sociedade do Cansaço, nos alerta que a opressão contemporânea não vem mais de um comando externo, mas sim da pressão interna que sentimos para sermos produtivos o tempo inteiro, conhecido como "sociedade do doping". Contudo, embora hoje essa exigência pareça vir de dentro, é preciso considerar que, em um futuro próximo, talvez não sejamos mais capazes de distinguir se esse cansaço é genuinamente nosso e o cansaço dinamicamente induzido por critérios de sucesso e relevância feitos por sistemas e modelos estatísticos.
Nas organizações, essa sensação de sobrecarga se materializa em uma figura alegórica: o Sísifo corporativo. Só que agora, em vez de empurrar uma pedra, ele carrega nas costas um fardo de dados, APIs, frameworks, integrações, stacks e metodologias. Cada uma dessas promessas é vista como uma possível vantagem competitiva, o que faz com que abandoná-las soe como um erro estratégico. Ainda assim, adotá-las todas — como se isso fosse possível — tem nos custado o que temos de mais limitado: atenção, tempo, saúde mental e disciplina. Esse cenário tem nos arrastado, progressivamente, a uma linha tênue. De um lado, seres humanos tentando operar com a mesma lógica de performance e velocidade das máquinas. De outro, as máquinas se tornando cada vez mais parecidas conosco, ao simular emoções, interpretar contextos e aprender padrões. Trata-se de uma convergência sutil, mas profunda, em que o humano é levado a funcionar como máquina, enquanto a máquina é treinada para agir como humano.
Nesse momento, o cansaço não se resguarda ao físico e se expande ao mental, estrutural e existencial, pois essa exaustão surge na tentativa incessante de acompanhar algo que, por definição, evolui mais rápido do que nós. Um esforço constante de aprendizado, adaptação e reinvenção que, embora necessário, nos esgota. Portanto, a questão que devemos colocar à mesa, principalmente no ambiente de negócios, não é apenas “como vamos inovar?”, mas sim: “quando e como devemos?”. Se os líderes não reconhecerem o peso silencioso desse cansaço mental, talvez acabemos implodindo os setores táticos, estratégicos e operacionais por exigirem tudo, mas nunca devolverem alívio.
Portanto, mais do que pregarmos a aplicação da tecnologia a qualquer custo, é preciso resgatar o valor do pensamento analítico como bússola nesse processo. A inteligência artificial, quando construída ou contratada, deveria ser fruto de uma reflexão sobre o que de fato precisa ser otimizado, e não apenas um reflexo da pressa em automatizar o que ainda nem compreendemos. Antes de embarcarmos em modelos complexos, deveríamos ser capazes de resolver o problema com “lápis e papel”, só assim a calculadora — ou o modelo de IA — poderá realmente servir como ferramenta de ampliação do raciocínio, e não como atalho para a alienação. A sofisticação não está na máquina que opera em nosso lugar, mas na clareza com que escolhemos quando, como e por que ela deve operar.
“Considero que o primeiro ponto importante a trazer é que nenhuma tecnologia - seja a AI ou qualquer outra - é uma solução mágica. Quando falamos sobre organizações e profissionais AI-Driven, estamos nos referindo a uma co-criação humano-máquina, onde o uso do pensamento crítico humano é fundamental para guiar e avaliar cada resultado trazido por uma IA. Um bom uso da IA pode nos poupar tempo, à medida que nos permite automatizar tarefas e processos, mas quem dita os “inputs” e as regras para a máquina somos nós, seres humanos. Imagine a seguinte situação: eu preciso priorizar iniciativas, seguindo os seguintes critérios: investimento, viabilidade técnica e aderência à estratégia. A partir do momento em que eu tenho esses critérios bem definidos, posso contar com o auxílio da IA para avaliar todas as minhas iniciativas atuais e futuras, aplicando um score em cada uma. Por outro lado, eu preciso analisar se essa avaliação de fato faz sentido com as iniciativas. Além de me poupar tempo, me auxilia em uma tomada de decisão importante - isso é um uso consciente da tecnologia. ”
“As questões da humanidade nunca foram técnicas. Essa ideia expressa de forma simples e direta que, independente do domínio humano sobre a tecnologia, as questões que se desdobram do seu uso são problemáticas que de alguma forma, seja direta ou indiretamente, já estavam presentes no comportamento humano antes dela.
Para elucidar essa questão gosto de citar o seguinte trecho:
”Os jovens de hoje gostam do luxo. São mal comportados, desprezam a autoridade. Não têm respeito pelos mais velhos, passam o tempo a falar em vez de trabalhar. Não se levantam quando um adulto chega. Contradizem os pais, apresentam-se em sociedade com enfeitos estranhos. Apressam-se a ir para a mesa e comem com voracidade, cruzam as pernas e tiranizam os seus mestres.”
Poderíamos supor com facilidade que, dadas as mudanças culturais provenientes dos avanços técnicos, trata-se de qualquer jovem de hoje. Entretanto, esse trecho foi atribuído por Platão à Sócrates no século V a.C. Realizamos algum avanço como humanidade em nosso comportamento desde então? Ou só desenvolvemos novos modos de criar os mesmos problemas?
As inteligências artificiais objetivamente não criaram nenhum problema novo no que diz respeito ao ser humano, elas só potencializaram e lançaram novas lentes sobre problemas que de algum modo já havíamos nos deparado. Nosso desafio nesse novo contexto é o de buscar responder a questões já levantadas mas nunca desenvolvidas de forma rigorosa a ponto de representar transformações sociais radicais. Aqui se apresenta então uma das premissas que constituem a origem do pensamento humano, a saber, o esforço contínuo de compreender a si mesmo diante de um mundo em constante mutação, sem jamais resolver definitivamente os dilemas que o atravessam.
A inteligência artificial nesse contexto apenas reformula o cenário em que esses dilemas reaparecem, mas não os dissolve. Se há algo de verdadeiramente humano nesse processo, é o impulso de retomar as mesmas perguntas sob novas formas, e tentar não cair no esquecimento do essencial indicado já pelos gregos: não é o avanço técnico que nos define, mas a maneira como decidimos viver com as ferramentas que criamos. Nesse sentido, o desafio não é acompanhar as máquinas, mas reconhecer, preservar e cultivar o que em nós resiste a ser automatizado, ou seja, o pensamento crítico, a sensibilidade, a ética e a capacidade de fazer da vida uma virtude.”