por Árlan Dias Sá
A relação do ser humano com o espaço sempre foi constitutiva de sua existência. Desde os primeiros registros geográficos de Hecateu de Mileto e Heródoto, passando pela matematização da terra por Eratóstenes e pela sistematização cartográfica de Ptolomeu, a necessidade de descrever, medir e dominar o espaço revela uma dimensão fundamental do humano: a geograficidade. A geografia não estuda apenas a relação com o espaço, mas no espaço, essa distinção sutil carrega implicações ontológicas fundamentais. O homem não apenas ocupa um lugar, ele o transforma, atribui sentido a ele, constrói território e onde houver território, como lembra a tradição geográfica crítica, haverá poder.
No entanto, o que ocorre quando o território deixa de ser apenas físico? Quando a guerra, como sugeriu Baudrillard em seu ensaio sobre a Guerra do Golfo, não se dá no deserto, mas na tela da televisão? “sólo funciona la tele, como un medio sin mensaje, mostrando por fin la imagen de la televisión pura” (BAUDRILLARD, 1991, p.68). A inteligência artificial, em sua dupla dimensão existencial, a saber, algoritmos imateriais e infraestruturas físicas, ocupa outro tipo de espaço geográfico para além da concepção tradicional: o ciberespaço. Este, entretanto, não é um não-lugar, mas um território complexo, marcado por disputas de controle, apropriação e significação. Desse modo, assim como todo território, ele é também campo de conflito e cooperação.
A IA, nesse sentido, não é neutra. Ela carrega consigo um projeto de mundo. A concentração de seu desenvolvimento em poucas corporações, majoritariamente localizadas em centros hegemônicos do Norte global, reproduz uma lógica neocolonial. Impõe-se, por meio de algoritmos, uma visão homogênea do humano, homogeneizando a diversidade cultural e antropológica características da história humana. A IA parece operar no mesmo sentido dos processos coloniais imperialistas, uma vez que suplanta a multidimensionalidade existencial em favor de uma linguagem única, uma racionalidade instrumental e singularmente uma ética do algoritmo.
Esse movimento não é apenas técnico; é também político. As big techs controlam não apenas servidores e cabos de fibra óptica, mas também as narrativas, as bolhas informacionais, as próprias condições de possibilidade do diálogo social. A promessa inicial da internet como espaço democrático deu lugar a um ambiente fragmentado, onde algoritmos de recomendação fortalecem extremos e se tornam solo fértil para a desinformação. A soberania, tradicionalmente vinculada a fronteiras físicas, é hoje desafiada por um poder globalmente territorializado e multiexistencial, que regula comportamentos, molda desejos e redefine o que é real.
Evidencia-se, então, as características fundamentais de um novo momento da história humana que necessita de uma análise crítica específica, própria do IAloceno: uma era em que a inteligência artificial reconfigura não apenas nossas ferramentas, mas a própria constituição do território simbólico. A pergunta que se impõe não é mais se a IA é capaz de imitar a linguagem humana (como discutido em textos anteriores do laboratório), mas que tipo de mundo ela está ajudando a construir. Será um mundo mais diverso, mais justo, mais livre? Ou será a consolidação de uma nova forma de imperialismo, silenciosa e algorítmica?
A tecnologia não é um fim em si mesma. Idealmente ela deve servir ao bem comum. No entanto, quando a IA é usada de forma irrestrita como conselheira íntima, como substituta do laço social, como mediadora universal, corremos o risco de abrir mão não apenas de nossa privacidade, mas de nossa capacidade de habitar criticamente o mundo.
Se a linguagem é a casa do ser, como nos alertou Heidegger, então a IA não habita essa casa. Entretanto ela pode, sim, remodelá-la por fora, tornando-a mais estreita, mais previsível, menos humana. Cabe a nós, então, não apenas regular juridicamente essas tecnologias, mas também reafirmar, com vigor filosófico e político, a importância do território como espaço de diversidade, de conflito e de sentido. Pois, no fim, a questão não é como a IA ocupa o espaço, mas como nós, humanos, resistiremos à homogeneização do mundo que ela pode provocar.
“O espaço deve ser considerado como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente.”
