Em alguns momentos da história, eventos ocorrem de maneira a afetar drasticamente características fundamentais do Ser do humano, e a esses momentos históricos damos o nome de revoluções. Apesar do termo estar presente no vocabulário popular, defini-lo não é uma tarefa simples, pois trata-se de um conceito com variado conteúdo semântico. A respeito dessa dificuldade, Koselleck (2006, p. 61) argumenta:
Poucas palavras foram tão largamente disseminadas e pertencem de maneira tão evidente ao vocabulário político moderno quanto o termo "revolução". Trata-se de uma dessas expressões empregadas de maneira enfática, cujo campo semântico é tão amplo e cuja imprecisão conceitual é tão grande que poderia ser definida como um clichê.
Ainda que elaborar uma definição única seja tarefa árdua e virtualmente infinita, uma vez que seu conteúdo sofre alterações constantes pelas apropriações e usos, para nossos esforços investigativos se faz suficiente a definição de revolução como uma “transformação da estrutura social” (KOSELLECK, 2006, p. 71).
Podemos citar como exemplo a Revolução Industrial que através do domínio técnico com a energia a vapor atrelado à movimentos filosóficos com a ideologia protestante calvinista, movimentos políticos com o cercamento das terras, movimentos sociais com a urbanização e superpopulação das capitais, além de econômicos com a ideologia liberal que transformou a relação de riqueza, resultaram em algo maior que a soma de suas partes, transmutando o Ser do humano para muito além das dimensões que resultaram nessa transformação.
Ainda como exemplo de um evento que evidencia essa transmutação da existência humana pelas revoluções, é possível analisar a Revolução Francesa que, apesar de se caracterizar como um movimento predominantemente político, é fruto de fatores econômicos, políticos e sociais que transformaram aspectos do pensamento humano. Entretanto, não se limitou a isso, uma vez que impactou também a maneira como todas as sociedades posteriores compreendiam e construíam sua própria maneira de se organizar e ser, resultado da influência dessas ideias através do imperialismo europeu.
O IAloceno desvela a característica revolucionária das inteligências artificiais, apesar de não se constituir como uma revolução de fato. Apesar delas não desencadearem por si só uma mudança política, social e econômica, as IAs estão presentes em todas essas estruturas e às modificaram à sua própria maneira. A escala, velocidade e magnitude desses impactos revelam uma característica própria desse processo revolucionário. Não se trata de uma nova forma de existência que depende de uma lenta assimilação conceitual de ideias e cultura, uma vez que as IAs representam um impacto evidente e crítico, independentemente da compreensão ou aceitação social dos espaços e culturas em que está presente, assumindo uma característica transversal nas formas de organização e gerenciamento de recursos da sociedade, bem como nossa forma de compreender e se relacionar com a realidade.
Porém, é importante ressaltar que, por se tratar de um fenômeno de transformação das estruturas sociais, também está submetido aos mesmos processos que outros momentos revolucionários apresentaram durante a seu desenvolvimento, como a abrangência de suas transformações segundo determinado espaço-tempo. Apesar do IAloceno se apresentar em uma realidade de aceleração dos processos humanos, consequência das ferramentas de comunicação e tecnologias de transformação da natureza presentes em nosso tempo, ainda assim, ele não atravessou de forma homogênea a barreira da desigual integração socioeconômica da humanidade. Mesmo após os processos de globalização, iniciados no rota da seda e acelerados na geração computacional, movimentos de transformação cultural ocorrem de maneira gradual, sendo mais perceptíveis em análises futuras, quando o olhar para o passado evidencia o início de transformações de características destacadas no presente. Como exemplo desse fenômeno podemos apontar que ainda no século XXI é possível encontrar comunidades com predominantes características pré-revolução industrial, o que por si só não desqualifica esse evento como revolucionário. A nível político e econômico as inteligências artificiais impactam em uma velocidade e escala próprias dos grandes centros urbanos o cenário geopolítico mundial, entretanto a nível social é evidente a desigualdade no acesso aos recursos necessários para construção cultural do uso das inteligências artificiais, seja pelos equipamentos necessários para seu acesso, educação ou a cultura.
Como exemplo podemos imaginar um cenário de uma região turística do interior da Bahia, como a Chapada Diamantina. Moradores locais vivem em um ritmo ainda não tão acelerado pelas IAs na forma de desenvolvimento do trabalho, aprendizado e influência de culturas externas à comunidade, porém, a indicação da região como centro cultural, a disseminação de informações por meio de IAs sobre o local e o desenvolvimento de um movimento turístico em massa para a região impacta diretamente a vida do cidadãos mesmo que os mesmos não utilizem inteligência artificiais de forma direta. Recursos que chegam até a região, a escala, variedade, meio de transporte, rota de distribuição, entre outras características logísticas e econômicas também impactam criticamente esse lugar ainda que os próprios moradores não utilizem inteligências artificiais diretamente. Culturalmente, a comunidade pode permanecer com características próprias singulares e pouco afetadas pelas IAs, entretanto, a nível político e econômico, fica evidente o impacto dessas tecnologias na região transformando a forma com que ela se relaciona com o todo geopolítico.
Para além dos impactos regionais e indiretos, a revolução do IAloceno se manifesta de forma igualmente profunda na própria estrutura do Estado e dos serviços públicos. No poder judiciário elas auxiliam na triagem de processos, na elaboração de minutas e na pesquisa jurisprudencial, agilizando o trabalho dos tribunais. Órgãos como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já utilizam esses sistemas. Na segurança pública os algoritmos preditivos podem ajudar a identificar áreas de maior risco, auxiliar na prevenção de crimes e fortalecer a cibersegurança, por exemplo. No setor de controle, o Tribunal de Contas da União (TCU) desenvolveu o ChatTCU, uma IA generativa para auxiliar na análise de normas e jurisprudência, otimizando a fiscalização e os serviços administrativos. Na área da saúde as IAs podem otimizar a gestão de suprimentos médicos, como medicamentos no SUS, e auxiliar no diagnóstico de doenças, impactando positivamente a qualidade de vida da população. Como uso geral, as IAs também podem ser aplicadas na gestão de ouvidorias, classificação de demandas de cidadãos e monitoramento de políticas públicas, como na área de educação para identificar riscos de evasão escolar. Seja de forma direta ou indireta, nossas vidas são cada vez mais impactadas por essa tecnologia.
Uma característica própria do IAloceno, apesar de não exclusiva, é a forma como as inteligências artificiais transmutaram a existência humana para além da sua forma de organizar socialmente e gerenciar recursos. Elas afetam como o humano se constitui, se compreende, compreende a realidade e interage com ela. Essa transmutação se mostra tão profunda que é capaz de impactar até mesmo o que compreendemos por Ser humano. Essa nova ontologia do Ser do humano é investigada nos ensaios e genealogias desse laboratório.
REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Pesquisa aponta que uso de IA é tendência consolidada no Judiciário. Brasília, DF: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisa-aponta-que-uso-de-ia-e-tendencia-consolidada-no-judiciario/. Acesso em: 10 nov. 2024.
FIOCRUZ. Inteligência artificial: quais são suas potencialidades e desafios para o SUS? Rio de Janeiro: Observatório do SUS, 2024, 5 nov. Disponível em: https://observatoriodosus.ensp.fiocruz.br/noticias/inteligencia-artificial-quais-sao-sua-potencialidades-e-desafios-para-o-sus/. Acesso em: 10 nov. 2024.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.
TCU. Inteligência artificial no poder judiciário: orientações para implantação e uso. Brasília, DF: Tribunal de Contas da União, 2023. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/publicacoes-institucionais/cartilha-manual-ou-tutorial/publicacao-institucional. Acesso em: 10 nov. 2024.
