Responsabilidade de quem? | ENSAIO #06

por Árlan Dias Sá  

A ética, enquanto campo fundamental da filosofia, se preocupa com a investigação dos princípios que orientam a ação humana, refletindo sobre o que é bom, justo, devido, etc. Aristóteles destaca-se como um dos primeiros nomes no campo, para o autor, a ética aparece como um exercício prático enraizado na vida da polis. A excelência ética não é apenas uma qualidade interior inata, mas uma prática pública e racional, orientada pela finalidade do ser humano, ou seja, a eudaimonia, a plenitude da vida virtuosa. A virtude, segundo ele, é adquirida por hábito, por praticar a prudência, pelo exercício de equilíbrio entre os excessos e as ausências. A ética aristotélica é, portanto, inseparável da dimensão política, pois o indivíduo só pode ser plenamente ético no convívio com os outros, em uma comunidade justa. Sua filosofia serviu de inspiração para o debate ético no campo da filosofia para todos os autores posteriores à ele, seja na concordância ou na refutação de suas ideias. Séculos depois, já na modernidade, surgem duas linhas dicotômicas quanto à abordagem da Ética. A primeira, é marcada por Immanuel Kant, que reformula radicalmente a ética ao deslocá-la da experiência empírica e da finalidade prática para o campo da razão pura. Sua ética define-se como deontológica, ou seja, o que importa não são as consequências das ações, mas a intenção moral que as orienta. Essa ideia é evidenciada no princípio fundamental da moral kantiana: o imperativo categórico. Nele, fica estabelecido que todas as ações devem ser feitas segundo máximas que possam ser universalizadas:“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1980, p. 129). Manifesta-se, então, a ideia do "reino dos fins", toda ação deve ser tomada como fins em si mesmos, jamais como meios. O dever, para Kant, não se curva a interesses ou afetos, mas obedece à lei moral inscrita na razão. Nesse mesmo contexto, o utilitarismo aparece de forma diametralmente oposta à deontologia. Através de autores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, a ética torna-se teleológica: o bem reside nos fins. Mas que fins são esses? Especificamente na maximização da felicidade ou do prazer. Trata-se de uma forma de consequencialismo, onde o valor moral das ações depende de seus resultados. Surge assim o cálculo hedônico na tentativa de quantificar prazeres e sofrimentos para orientar decisões. Essa ética é pragmática, voltada à promoção do bem-estar coletivo, tentando utilizar a lógica das ciências naturais aplicadas à ética no intuito de garantir maior precisão e cientificismo no processo de tomadas de decisões.

Como resultado da reverberação da ética deontológica e utilitária, o direito, a política, e as demais formas de organização social constituíram suas concepções de justiça, valor, etc. Mas a ética não deixou de ser um campo de disputa por isso. Diante dos horrores do século XX, em especial, com a contemplação da magnitude da bomba atômica, Hans Jonas propõe um novo paradigma ético. A técnica moderna deu ao ser humano um poder inédito de intervenção no mundo e nos próprios fundamentos da vida: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47). Por isso, Jonas afirma que os modelos éticos tradicionais já não bastam: nasce a necessidade de um Princípio Responsabilidade, que oriente a ação humana com base na preservação da vida futura: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra”. Esse princípio, longe de ser um apelo ao medo irracional, fundamenta-se em uma heurística do medo: diante do risco de destruição irreversível, o temor pode se tornar um guia racional da prudência. O “fim” e o “valor” se deslocam da autorrealização do indivíduo para a continuidade da existência humana. Jonas conecta as noções de bem, dever e ser. A ética não pode mais ser apenas normativa ou idealista, precisa considerar o ser real, finito, vulnerável. Daí deriva sua concepção de responsabilidade total: não apenas responsabilidade por filhos ou concidadãos, mas por toda a humanidade, inclusive a ainda não nascida. Isso implica, também, uma nova abordagem à tecnologia. A existência das inteligências artificiais colocam essa questão no centro do debate de forma complexa e inédita. Se elas podem tomar decisões autônomas, quem responde por suas consequências? Quando seus criadores morrem ou suas intenções se perdem com o tempo, permanece a dúvida de quem é o responsável? As IAs, por si só, podem ser consideradas responsáveis? Teriam elas consciência, intencionalidade e liberdade, ou seja, poderiam elas ser julgadas pelos critérios tradicionais? Ou precisamos inventar novos conceitos de responsabilidade e novas formas de julgamento e condenação?

Essas questões nos conduzem a um novo espaço lógico de discussão: O impacto ético da convivência humano-máquina, não apenas no plano técnico, mas nas relações interpessoais e sociais. Quando um assistente virtual orienta decisões médicas ou jurídicas, ou quando carros autônomos tomam decisões de percurso ou postura em acidentes inevitáveis, sua influência é real, ou seja, não estamos mais discutindo questões teóricas de um futuro idealizado, mas dilemas reais de um ente em atuação direta e indireta. Como medir, prever e regular esse impacto? Isso é possível? Como julgamos seus erros? Que tipo de justiça é possível numa sociedade em que a ação moral não é mais exclusividade ou diretamente humana? Estamos na borda de uma revolução ética, ou seja, a passagem de uma moral centrada no sujeito para uma moral distribuída entre humanos e não-humanos. Nessa nova visão de tempo, a consciência de uma real justiça, fundada não apenas em direitos e deveres individuais, mas em redes de responsabilidades compartilhadas, torna-se inevitável e necessária. Precisamos, portanto, urgentemente, repensar os conceitos de bem, dever, ente e Ser, de forma adequada a nossa realidade como se manifesta, em que a técnica não é apenas instrumento, mas coautora da história.

O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir.
— Hans Jonas
“Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer.
— Hans Jonas