por Árlan Dias Sá
A filosofia se distingue das demais formas de conhecimento justamente por seu trato rigoroso com os conceitos. Ao contrário do senso comum, que opera muitas vezes por aproximações vagas e por associações imediatas, a filosofia busca elaborar conceitos precisos, capazes de apreender e explorar as estruturas profundas da realidade. Entre esses conceitos, poucos são tão centrais quanto o de intencionalidade, cuja compreensão atravessa séculos de pensamento filosófico, desde Aristóteles até os dilemas colocados pelas Inteligências Artificiais hoje.
Intencionalidade, no vocabulário filosófico, não deve ser confundida com a noção cotidiana de “ter uma intenção”, como esperar ou desejar que algo aconteça. No senso comum, a intenção é frequentemente compreendida como expectativa ou previsão de um resultado, quase sempre imersa em uma lógica consequencialista. No entanto, na tradição filosófica, é em Aristóteles que encontramos os primeiros fundamentos do que seria uma estrutura fundamental da consciência, ao pensar o intelecto como algo que “se torna todas as coisas” ao conhecê-las. Essa potência do espírito, foi desenvolvida posteriormente na Escolástica, onde a intencionalidade foi compreendida como um direcionamento essencial interno da nossa mente para algo, seja um objeto físico externo, um conceito abstrato ou uma realidade metafísica interna. Como um dos últimos representantes já na modernidade desse movimento intelectual, temos Francisco Suárez, que refinou a intencionalidade constituindo fundamento para a noção de que a mente não é um receptáculo passivo de impressões, mas um movimento ativo em direção ao ser. A consciência, então, demonstra-se, não ser jamais neutra. Ela é, por definição, intencional, dirigida para o mundo. Apesar desses avanços geniais, é somente com Edmund Husserl que ocorre um salto decisivo da constituição desse conceito. O autor traz a intencionalidade para o centro da reflexão fenomenológica. Para Husserl, toda consciência é consciência DE algo. Isso não apenas reafirma a tese clássica, mas aprofunda o conceito ao definir que a realidade não é dada “em si”, mas é constituída na correlação entre a consciência e o mundo. A análise da intencionalidade torna-se, assim, um método privilegiado para compreender não apenas os atos mentais, mas o próprio modo como o mundo se mostra à experiência.
A intencionalidade, no entanto, não permanece um fenômeno puramente mental no debate filosófico. Martin Heidegger, ao retomar e reformular as categorias da fenomenologia, direciona a discussão para o aspecto do ser-no-mundo. Para ele, a intencionalidade não é apenas uma direção da consciência, mas uma manifestação existencial do Dasein, ou seja, o ente que se questiona sobre o seu próprio ser. Assim, não há intencionalidade fora de um mundo, fora de um horizonte de sentido no qual o existir se dá de modo autêntico ou inautêntico. A intencionalidade, nesse quadro, não é apenas uma ação da consciência, mas um modo de ser. Discutir a intencionalidade, portanto, é discutir a própria consciência. E se a consciência é esse movimento direcionado e aberto ao mundo, é inevitável que a discussão contemporânea sobre a intencionalidade das inteligências artificiais nos leve a um questionamento mais profundo: as máquinas, possuem alguma forma de intencionalidade? Estariam elas também na margem de desenvolver uma consciência?
A pretensão do presente ensaio foge um pouco do escopo do Ialoceno, mas corresponde à problemática mais ampla que temos desenvolvido até o momento. Se assumirmos como verdade que a intencionalidade não é apenas um conteúdo mental, mas um modo fundamental de se relacionar com o mundo, então a análise da IA contemporânea deve considerar não apenas sua funcionalidade, mas o modo como ela se manifesta no mundo. Sistemas inteligentes processam dados, tomam decisões, respondem a estímulos, e até mesmo “aprendem” com a experiência. Mas fazem isso como resultado de algoritmos, sem que necessariamente possuam um “mundo” no qual estão imersos, não possuem um Dasein, não se manifestam de modo autêntico no sentido existencial proposto por Heidegger. A pergunta, então, torna-se mais sutil: a IA manifesta uma intencionalidade artificial? Ou seria sua ação apenas simulada, sem uma verdadeira direção consciente ao mundo? Então, o que significa dizer que algo é "consciente" se removermos dessa definição a intencionalidade como estrutura constitutiva? É possível falar de consciência sem esse elemento? Infelizmente para nós, nesse breve ensaio, não podemos responder nenhuma dessas questões sem um profundo mergulho na autenticidade da consciência.
Para esse momento, podemos afirmar que independentemente da abordagem clássica, fenomenológica ou existencial, o conceito de intencionalidade nos força a reconhecer que não é possível falar de consciência sem falar do modo como essa consciência se direciona, se projeta, se lança no mundo. E, portanto, pensar a inteligência artificial a partir da intencionalidade não se resume apenas em perguntar se as máquinas “pensam”, mas sobretudo se existem de modo intencional, se constituem um mundo, e se são, por isso, portadoras de alguma forma de consciência. Desse modo, a filosofia, ao precisar e desenvolver o conceito de intencionalidade, oferece uma lente poderosa não apenas para compreender a mente humana, mas também para lançar uma luz sobre as questões mais urgentes da contemporaneidade, as fronteiras entre tecnologia, consciência e existência.
“Cogito, ergo sum.”