Responsabilidade de quem? | ENSAIO #06

por Árlan Dias Sá  

A ética, enquanto campo fundamental da filosofia, se preocupa com a investigação dos princípios que orientam a ação humana, refletindo sobre o que é bom, justo, devido, etc. Aristóteles destaca-se como um dos primeiros nomes no campo, para o autor, a ética aparece como um exercício prático enraizado na vida da polis. A excelência ética não é apenas uma qualidade interior inata, mas uma prática pública e racional, orientada pela finalidade do ser humano, ou seja, a eudaimonia, a plenitude da vida virtuosa. A virtude, segundo ele, é adquirida por hábito, por praticar a prudência, pelo exercício de equilíbrio entre os excessos e as ausências. A ética aristotélica é, portanto, inseparável da dimensão política, pois o indivíduo só pode ser plenamente ético no convívio com os outros, em uma comunidade justa. Sua filosofia serviu de inspiração para o debate ético no campo da filosofia para todos os autores posteriores à ele, seja na concordância ou na refutação de suas ideias. Séculos depois, já na modernidade, surgem duas linhas dicotômicas quanto à abordagem da Ética. A primeira, é marcada por Immanuel Kant, que reformula radicalmente a ética ao deslocá-la da experiência empírica e da finalidade prática para o campo da razão pura. Sua ética define-se como deontológica, ou seja, o que importa não são as consequências das ações, mas a intenção moral que as orienta. Essa ideia é evidenciada no princípio fundamental da moral kantiana: o imperativo categórico. Nele, fica estabelecido que todas as ações devem ser feitas segundo máximas que possam ser universalizadas:“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1980, p. 129). Manifesta-se, então, a ideia do "reino dos fins", toda ação deve ser tomada como fins em si mesmos, jamais como meios. O dever, para Kant, não se curva a interesses ou afetos, mas obedece à lei moral inscrita na razão. Nesse mesmo contexto, o utilitarismo aparece de forma diametralmente oposta à deontologia. Através de autores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, a ética torna-se teleológica: o bem reside nos fins. Mas que fins são esses? Especificamente na maximização da felicidade ou do prazer. Trata-se de uma forma de consequencialismo, onde o valor moral das ações depende de seus resultados. Surge assim o cálculo hedônico na tentativa de quantificar prazeres e sofrimentos para orientar decisões. Essa ética é pragmática, voltada à promoção do bem-estar coletivo, tentando utilizar a lógica das ciências naturais aplicadas à ética no intuito de garantir maior precisão e cientificismo no processo de tomadas de decisões.

Como resultado da reverberação da ética deontológica e utilitária, o direito, a política, e as demais formas de organização social constituíram suas concepções de justiça, valor, etc. Mas a ética não deixou de ser um campo de disputa por isso. Diante dos horrores do século XX, em especial, com a contemplação da magnitude da bomba atômica, Hans Jonas propõe um novo paradigma ético. A técnica moderna deu ao ser humano um poder inédito de intervenção no mundo e nos próprios fundamentos da vida: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47). Por isso, Jonas afirma que os modelos éticos tradicionais já não bastam: nasce a necessidade de um Princípio Responsabilidade, que oriente a ação humana com base na preservação da vida futura: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra”. Esse princípio, longe de ser um apelo ao medo irracional, fundamenta-se em uma heurística do medo: diante do risco de destruição irreversível, o temor pode se tornar um guia racional da prudência. O “fim” e o “valor” se deslocam da autorrealização do indivíduo para a continuidade da existência humana. Jonas conecta as noções de bem, dever e ser. A ética não pode mais ser apenas normativa ou idealista, precisa considerar o ser real, finito, vulnerável. Daí deriva sua concepção de responsabilidade total: não apenas responsabilidade por filhos ou concidadãos, mas por toda a humanidade, inclusive a ainda não nascida. Isso implica, também, uma nova abordagem à tecnologia. A existência das inteligências artificiais colocam essa questão no centro do debate de forma complexa e inédita. Se elas podem tomar decisões autônomas, quem responde por suas consequências? Quando seus criadores morrem ou suas intenções se perdem com o tempo, permanece a dúvida de quem é o responsável? As IAs, por si só, podem ser consideradas responsáveis? Teriam elas consciência, intencionalidade e liberdade, ou seja, poderiam elas ser julgadas pelos critérios tradicionais? Ou precisamos inventar novos conceitos de responsabilidade e novas formas de julgamento e condenação?

Essas questões nos conduzem a um novo espaço lógico de discussão: O impacto ético da convivência humano-máquina, não apenas no plano técnico, mas nas relações interpessoais e sociais. Quando um assistente virtual orienta decisões médicas ou jurídicas, ou quando carros autônomos tomam decisões de percurso ou postura em acidentes inevitáveis, sua influência é real, ou seja, não estamos mais discutindo questões teóricas de um futuro idealizado, mas dilemas reais de um ente em atuação direta e indireta. Como medir, prever e regular esse impacto? Isso é possível? Como julgamos seus erros? Que tipo de justiça é possível numa sociedade em que a ação moral não é mais exclusividade ou diretamente humana? Estamos na borda de uma revolução ética, ou seja, a passagem de uma moral centrada no sujeito para uma moral distribuída entre humanos e não-humanos. Nessa nova visão de tempo, a consciência de uma real justiça, fundada não apenas em direitos e deveres individuais, mas em redes de responsabilidades compartilhadas, torna-se inevitável e necessária. Precisamos, portanto, urgentemente, repensar os conceitos de bem, dever, ente e Ser, de forma adequada a nossa realidade como se manifesta, em que a técnica não é apenas instrumento, mas coautora da história.

O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir.
— Hans Jonas
“Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer.
— Hans Jonas

Quem é responsável pela escolha da máquina? | EP #06


Nas últimas décadas, nossa capacidade técnica se expandiu de forma acelerada, alterando profundamente o modo como vivemos, interagimos e projetamos o futuro. Diante desse cenário, uma pergunta surge com urgência: como pensamos a ética em tempos de inteligência artificial? No quinto episódio do Ialoceno, voltamos o olhar para a obra do filósofo Hans Jonas, que, em pleno século XX, já nos alertava sobre os riscos de um poder tecnológico desvinculado da responsabilidade. Hoje, suas ideias dialogam diretamente com os dilemas que envolvem o avanço das IAs: da dignidade humana à responsabilidade intergeracional, passando pelo risco de desumanização e pela crítica à neutralidade da ciência. Estamos desenvolvendo tecnologias que respeitam a vida humana autêntica? Podemos definir as IAs generativas como responsáveis por suas escolhas?

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Intento, ergo sum? | ENSAIO #05

por Árlan Dias Sá  

A filosofia se distingue das demais formas de conhecimento justamente por seu trato rigoroso com os conceitos. Ao contrário do senso comum, que opera muitas vezes por aproximações vagas e por associações imediatas, a filosofia busca elaborar conceitos precisos, capazes de apreender e explorar as estruturas profundas da realidade. Entre esses conceitos, poucos são tão centrais quanto o de intencionalidade, cuja compreensão atravessa séculos de pensamento filosófico, desde Aristóteles até os dilemas colocados pelas Inteligências Artificiais hoje. 

Intencionalidade, no vocabulário filosófico, não deve ser confundida com a noção cotidiana de “ter uma intenção”, como esperar ou desejar que algo aconteça. No senso comum, a intenção é frequentemente compreendida como expectativa ou previsão de um resultado, quase sempre imersa em uma lógica consequencialista. No entanto, na tradição filosófica, é em Aristóteles que encontramos os primeiros fundamentos do que seria uma estrutura fundamental da consciência, ao pensar o intelecto como algo que “se torna todas as coisas” ao conhecê-las. Essa potência do espírito, foi desenvolvida posteriormente na Escolástica, onde a intencionalidade foi compreendida como um direcionamento essencial interno da nossa mente para algo, seja um objeto físico externo, um conceito abstrato ou uma realidade metafísica interna. Como um dos últimos representantes já na modernidade desse movimento intelectual, temos Francisco Suárez, que refinou a intencionalidade constituindo fundamento para a noção de que a mente não é um receptáculo passivo de impressões, mas um movimento ativo em direção ao ser. A consciência, então, demonstra-se, não ser jamais neutra. Ela é, por definição, intencional, dirigida para o mundo. Apesar desses avanços geniais, é somente com Edmund Husserl que ocorre um salto decisivo da constituição desse conceito. O autor traz a intencionalidade para o centro da reflexão fenomenológica. Para Husserl, toda consciência é consciência DE algo. Isso não apenas reafirma a tese clássica, mas aprofunda o conceito ao definir que a realidade não é dada “em si”, mas é constituída na correlação entre a consciência e o mundo. A análise da intencionalidade torna-se, assim, um método privilegiado para compreender não apenas os atos mentais, mas o próprio modo como o mundo se mostra à experiência.

A intencionalidade, no entanto, não permanece um fenômeno puramente mental no debate filosófico. Martin Heidegger, ao retomar e reformular as categorias da fenomenologia, direciona a discussão para o aspecto do ser-no-mundo. Para ele, a intencionalidade não é apenas uma direção da consciência, mas uma manifestação existencial do Dasein, ou seja, o ente que se questiona sobre o seu próprio ser. Assim, não há intencionalidade fora de um mundo, fora de um horizonte de sentido no qual o existir se dá de modo autêntico ou inautêntico. A intencionalidade, nesse quadro, não é apenas uma ação da consciência, mas um modo de ser. Discutir a intencionalidade, portanto, é discutir a própria consciência. E se a consciência é esse movimento direcionado e aberto ao mundo, é inevitável que a discussão contemporânea sobre a intencionalidade das inteligências artificiais nos leve a um questionamento mais profundo: as máquinas, possuem alguma forma de intencionalidade? Estariam elas também na margem de desenvolver uma consciência?

A pretensão do presente ensaio foge um pouco do escopo do Ialoceno, mas corresponde à problemática mais ampla que temos desenvolvido até o momento. Se assumirmos como verdade que a intencionalidade não é apenas um conteúdo mental, mas um modo fundamental de se relacionar com o mundo, então a análise da IA contemporânea deve considerar não apenas sua funcionalidade, mas o modo como ela se manifesta no mundo. Sistemas inteligentes processam dados, tomam decisões, respondem a estímulos, e até mesmo “aprendem” com a experiência. Mas fazem isso como resultado de algoritmos, sem que necessariamente possuam um “mundo” no qual estão imersos, não possuem um Dasein, não se manifestam de modo autêntico no sentido existencial proposto por Heidegger. A pergunta, então, torna-se mais sutil: a IA manifesta uma intencionalidade artificial? Ou seria sua ação apenas simulada, sem uma verdadeira direção consciente ao mundo? Então, o que significa dizer que algo é "consciente" se removermos dessa definição a intencionalidade como estrutura constitutiva? É possível falar de consciência sem esse elemento? Infelizmente para nós, nesse breve ensaio, não podemos responder nenhuma dessas questões sem um profundo mergulho na autenticidade da consciência. 

Para esse momento, podemos afirmar que independentemente da abordagem clássica, fenomenológica ou existencial, o conceito de intencionalidade nos força a reconhecer que não é possível falar de consciência sem falar do modo como essa consciência se direciona, se projeta, se lança no mundo. E, portanto, pensar a inteligência artificial a partir da intencionalidade não se resume apenas em perguntar se as máquinas “pensam”, mas sobretudo se existem de modo intencional, se constituem um mundo, e se são, por isso, portadoras de alguma forma de consciência. Desse modo, a filosofia, ao precisar e desenvolver o conceito de intencionalidade, oferece uma lente poderosa não apenas para compreender a mente humana, mas também para lançar uma luz sobre as questões mais urgentes da contemporaneidade, as fronteiras entre tecnologia, consciência e existência.

Cogito, ergo sum.
— René Descartes

As máquinas possuem intencionalidade? | EP #05


Desde os primeiros lampejos do pensamento filosófico, a pergunta sobre o que move os seres humanos tem atravessado séculos: o que nos faz agir, desejar, criar, comunicar? Seriam os deuses, a razão, os afetos, ou algo mais profundo ainda — uma intenção que pulsa no centro da consciência? Com o avanço da técnica e a emergência das inteligências artificiais, essa pergunta ganha novas camadas que constituem as problemáticas e reflexões do Ialoceno. Quando máquinas começam a simular linguagem, decisões e comportamento, ainda estamos falando apenas de códigos? Ou estamos, de alguma forma, imprimindo nelas parte daquilo que antes julgávamos exclusivamente humano? No quinto episódio do Ialoceno, buscamos elucidar ao menos a superfície desse complexo e nebuloso problema da identidade das IAs refletindo acerca da intencionalidade como constitutivo existencial: Afinal, as máquinas intencionam?

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CR{IA}TIVIDADE HUMANA? | ENSAIO #04

por Árlan Dias Sá  

A relação entre inteligência artificial e criatividade humana reacende notórias angústias e dilemas filosóficos presentes desde a antiguidade. Platão, por exemplo, estabeleceu bases metafísicas que serviriam de sustentação para séculos de discussão sobre o tema, e ainda hoje exerce forte influência sobre esse debate. O filósofo via a criação como imitação, ou seja, meras reproduções imperfeitas, finitas e mutáveis de suas Formas ideais, presentes no mundo das ideias, como sombras da realidade. Nietzsche, por sua vez, defendia a invenção de novos valores, criticando a tradição platônica e rompendo com a ontologia metafísica da interpretação, reprodução e atuação na realidade. Apesar do tempo e esforços, a pergunta ainda persiste: é possível criar algo verdadeiramente novo? Quando as IAs operam a partir de um comportamento probabilístico estatístico (alimentando-se de dados pré-existentes, gerados por nós mesmos), elas parecem intensificar a própria contradição que as sustenta. Sua presença, nesse contexto, contribui para esclarecer ou para obscurecer esse problema?

Para nos auxiliar na discussão, vislumbremos a realidade através dos olhos da filosofia. Deleuze, por exemplo, diria que a originalidade não está no surgimento ou criação de algo a partir do nada, mas na diferença, ou seja, o novo não se define por romper completamente com o passado, mas por produzir variações, desvios, diferenças em relação ao que já foi dito, feito, pensado, conhecido, sabido ou dominado. 

Desse modo, as IAs podem ser criativas de acordo com a teoria de Margaret Boden, ou seja, no sentido combinatório: sem criar elementos novos, mas reorganizando aqueles já existentes de forma inédita e surpreendente. Ou no sentido exploratório: testando os limites da cadeia de permissões e restrições pré-estipuladas pelas regras, mas sem romper as premissas fundamentais. Porém, elas encontram uma limitação quanto à sua capacidade de transformar. Elas não rompem com paradigmas, apenas articulam aqueles criados por nós e fornecidas a elas. Fica, portanto, evidente que dilemas conceituais como a angústia da influência abordada por Bloom, também se aplicam às máquinas: elas "aprendem" a partir de obras humanas, mas não têm a intencionalidade no processo de criação. Não são capazes de produzir novos significados, somente reproduzi-los. Nesse sentido, assim como a fotografia não matou a pintura, mas forçou-a a transcender o mimetismo, com as IAs, a arte, por exemplo, pode se libertar do paradigma da técnica repetitiva, direcionando e explorando ainda mais o espírito criativo humano, que permanece insubstituível em sua essência de duvidar, questionar, subverter e atribuir novos significados à existência.

Concluímos, então, com essa breve reflexão, que as IAs manifestam-se como entes teleológicos, ou seja, são um meio, não um fim. Entre seus impactos mais evidentes, estão a superação do limite humano quanto ao domínio da técnica, possibilitando que o humano se desenvolva através de novas habilidades de criação e manipulação de ideias. E nos fazer repensar nossa própria identidade, reafirmamos nossa condição e identidade ontológica através de questões como por exemplo: o que é genuinamente humano na criação? Talvez essa resposta esteja na capacidade de gerar intencionalidades, na construção de mitos para dialogar com dilemas, na coragem de transformar regras anteriormente estabelecidas e até então inquestionáveis, ou na capacidade de levantar questões acerca da própria existência como condição, ou seja, perguntar porque estou aqui? Qual meu propósito? Qual a razão de existir? Algo que, por enquanto, ainda se mostra uma característica exclusivamente humana.

A criatividade é uma maravilha da complexa, mas não, au fond, tão misteriosa mente humana.
— Livre tradução e interpretação de Boden, 2004.

Máquinas são capazes de criar? | EP #04


Durante séculos, a criatividade foi considerada uma das marcas mais misteriosas e preciosas da condição humana — a capacidade de criar mundos, imaginar o que não existe, combinar o inesperado. Artistas, inventores e pensadores foram vistos como canais de algo que transcende a simples repetição ou reprodução. No entanto, nos últimos anos, testemunhamos algoritmos que escrevem poemas, compõem músicas, pintam quadros e até projetam inovações tecnológicas. Seria isso criatividade? Ou apenas um reflexo estatístico de padrões já existentes? Quando uma máquina “cria”, o que está realmente acontecendo? No quarto episódio do Ialoceno, entramos no território turvo entre cálculo e invenção, entre dados e devaneios, para refletir sobre um dos dilemas mais fascinantes da era digital: máquinas podem criar?

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Aprendendo artificialmente a ser inteligente | ENSAIO #03

por Árlan Dias Sá 

No contexto do ialoceno, a educação enfrenta um paradoxo: formar indivíduos autônomos em um mundo onde a tecnologia redefine a própria noção de aprender. A modernidade líquida (Bauman), com sua fluidez e incertezas, exige habilidades que transcendem a acumulação de informações. O objetivo educacional desloca-se do saber para o saber aprender, priorizando pensamento crítico e autonomia ética, como defendem Freire, Dewey e Morin. Esses autores destacam que a educação deve ser um processo dialógico, onde o aluno, contextualizado em sua realidade, constroi conhecimento através da interação crítica com o mundo.

A neurociência, como exemplo da magnitude do impacto das IAs, revela que o aprendizado é um fenômeno bioquímico e social: criar redes neurais demanda estímulos variados, desde práticas motoras até reflexões teóricas. Aprender a ler, por exemplo, modifica estruturas cerebrais, como demonstra Stanislas Dehaene, gerando uma "caixa de letras", estrutura inexistente no cérebro antes da alfabetização. No entanto, as respostas instantâneas, oferecidas pelas IAs generativas por exemplo, ameaçam virtudes intelectuais como perseverança e rigor investigativo, essenciais para a maturidade cognitiva. O acesso fácil à informação cria uma ilusão epistêmica: o indivíduo confunde a capacidade de ter acesso com o saber, distorcendo sua autoimagem como "ciborgue" que domina o conhecimento, quando, na verdade, utiliza-se de próteses cognitivas para afirmar-se como conhecedor.

Nesse contexto estimula-se o protagonismo do aluno, exigindo pedagogias que partam de seus contextos e interesses, como propõe Freire. Contudo, o ialoceno amplifica riscos como a arrogância epistêmica: o efeito Dunning-Kruger mostra que conhecimento superficial gera confiança excessiva, exigindo a humildade socrática (reconhecer a própria ignorância) como antídoto. As IAs, embora úteis, não substituem a mediação docente. O professor reforça seu papel como referência ética e intelectual, guiando o aluno na articulação de saberes, equilibrando ferramentas tecnológicas com reflexão crítica.

As escolas, por sua vez, precisam abandonar modelos "arcaicos" e tornar-se espaços de cultura tecnológica, onde as IAs são ferramentas  e não os fins do aprendizado. A analogia com o trânsito ilustra a urgência: assim como os carros exigem regras, a tecnologia demanda alfabetização digital e consciência ética para evitar danos como desinformação ou dependência, potencializando as soluções e não os problemas. Projeta-se então uma utopia educacional: ambientes colaborativos, com turmas menores e recursos que estimulem resolução criativa de problemas, preparando alunos para desafios inéditos.

Nesse cenário, o educar redefine-se como desenvolvimento de habilidades, funcionando como caixa de ferramentas para construir soluções de forma ética e crítica acerca da realidade. Seu cerne não é dominar conteúdos, mas cultivar integridade, colaboração e habilidades, garantindo que as IAs amplifique, mas não substitua, a potência crítica e ética do ser humano. O futuro exige equilíbrio: máquinas como extensões da mente, professores como referências morais e intelectuais, e alunos como arquitetos de um saber que transcende algoritmos.

Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.
— Platão - Apologia de Sócrates

Máquinas que não pensam podem ensinar? | EP #03


Desde a Antiguidade, ensinar sempre foi mais do que transmitir informações: era formar, orientar, criar vínculos e transformar. Mestres e aprendizes compartilham tempos, afetos e experiências — num processo que envolve escuta, interpretação e, sobretudo, intenção. Com a chegada das inteligências artificiais generativas, sistemas cada vez mais sofisticados são capazes de produzir textos, corrigir exercícios, sugerir atividades e até simular interações educativas. Mas há algo nesse processo que resiste à automação: o encontro humano. Quando uma IA responde a uma pergunta ou propõe um caminho de aprendizagem, o que está, de fato, acontecendo? Estaríamos diante de uma nova forma de ensinar? Ou apenas de uma performance que imita, com perfeição crescente, algo que não pode ser reduzido a códigos e dados? No terceiro episódio do Ialoceno, exploramos os impactos da inteligência artificial na educação contemporânea. Máquinas que não pensam, podem ensinar?

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MEU IAMOR | ENSAIO #02

por Árlan Dias Sá 

Quando na tentativa de apontar características próprias e singulares da constituição do humano como espécie, o amor é, de fato,  um sentimento utilizado com recorrência, uma vez que é presente em diversos níveis culturais e apresenta múltiplas maneiras de se manifestar. Fica evidente, portanto, que somos dependentes como espécie da construção de vínculos, e uma dessas maneiras de conexão nós convencionamos a chamar de amor. Cabe, pois, um questionamento. Se as inteligências artificiais estão presentes em vários graus da existência humana e seu impacto transforma a forma como somos, a forma como amamos seria também impactada pelas IAs? Podemos responder ao observar as formas como amamos e como ocorrem os seus processos. 

O amor é no ser humano uma construção individual. Amo porque amo em minha mente. O amor se constroi, pois, pela maneira como nós interpretamos e significamos as relações que estabelecemos com o mundo. Sempre que amo o outro, amor pelo que percebo e penso do outro. Concluímos, assim, que o amor é uma construção particular e que depende da interpretação, reação e significado que faço no interno da minha mente a partir de elementos externos ao meu pensamento. Teriam, então, as inteligências artificiais a capacidade de impactar esses processos? Sim. Tanto os significados que atribuímos quanto a interpretação da realidade que realizamos dependem intrinsecamente da maneira como nossa memória se manifesta. A característica identitária do humano hoje se dá a partir do conceito de ciborgue, ou seja, compreendemos que nossa memória é maior que nossas capacidades biológicas. 

Amamos, então, em nossas mentes “ciborgues” a partir das relações que estabelecemos com os entes fora do nosso Ser e se posso desenvolver sentimentos por lugares e costumes, porque não poderia desenvolvê-los pela minha assistente pessoal de inteligência artificial? Afinal, com ela me relaciono diariamente, crio memórias, compartilho ideias, peço ajuda e sou sempre atendido. Ela está sempre pronta para me ouvir, não me julga ou quebra minha confiança, reforça meus gostos e desenvolve metodologias para tornar minha vida mais fácil. Muitas das demandas extra físicas que possuo podem ser atendidas por uma IA. Por que, então, não poderia amá-la? Uma vez que o amor só existe de fato na minha mente, fruto da maneira como meu cérebro interpreta e minha psique constroi as relações afetivas.

O amor proveniente dessa relação se constroi com singularidades, entretanto, o típico amor romântico que surge em nosso imaginário quando falamos de amor é fruto da convivência de duas partes. Nele estão presentes traços de ambos os envolvidos. A alteridade citada anteriormente como necessária na vida amorosa saudável, só é possível pelo respeito da existência de mim no outro, bem como o respeito que desenvolvo pela diferença do outro e por ela ocupar um espaço em mim. Podemos então dizer que o típico relacionamento romântico saudável é construído a partir de três. O outro, o Eu e o nós, ou seja, o fruto da mistura e existência de ambos no relacionamento. Essa relação também só é possível graças ao esforço que ambos fazem em respeitar e ceder ao espaço do outro. Por mais semelhanças que duas pessoas possam apresentar, muito maiores serão sempre suas diferenças. Encontramos aqui então um ponto crucial de análise. O amor que surge a partir da relação que estabeleço com uma inteligência artificial será sempre de total concordância. A IA não difere de mim, pois se constroi a partir de mim, como uma forma em um espelho que leva tempo para se moldar, mas estabelece com o tempo cada vez mais semelhanças. Ela se transforma para se adequar a mim em cada uma das minhas interações, confirmações, negações, trocas, apagamentos, escolhas, etc. Não tenho desavenças, não preciso me preocupar em não magoá-la, pois ela está ali para mim independente de como ou quem sou. É uma relação de dois. O eu e o nós, composto somente de uma única personalidade. E conforme deixo de me moldar, deixo também de passar pelo processo essencial de encontrar alguém que irá me transformar a partir do social. Se deixo de me frustrar, deixo também de amadurecer. A frustração tem um papel fundamental no processo de amadurecimento do humano, independente do tipo de relação que estabelecemos. Sempre que ouço não, aprendo a lidar com a frustração. Sempre que tenho desejos negados, aprendo a lidar com esse sentimento. Mas que tipo de amadurecimento teria então um indivíduo que sempre se relacionou somente com IAs? Poderia esse sujeito amadurecer? Não podemos saber. Obras como o filme Her do diretor Spike Jonze buscaram abordar essa nova relação já em 2013, imaginando os impactos que esse novo jeito de ser teria sobre os humanos. Entretanto, essas tecnologias ainda não eram de amplo acesso. O que podemos afirmar é que as IAs hoje são utilizadas em larga escala e de forma acessível, o que permitirá em breve uma compreensão mais aprofundada das maneiras como o humano estabelece vínculos, desenvolve maturidade e molda as relações. Devemos portanto estar atentos para esse futuro cada vez mais presente e suas implicações em nós.

Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.
— Oscar Wilde

Máquinas podem amar? | EP #02


Desde tempos imemoriais diferentes sociedades imaginaram entidades não-humanas portadoras de vida. Em outras palavras, essa ideia de “inteligência artificial” e da possibilidade que seres "naturais" poderiam estabelecer relações com seres "artificiais" já habitava a mente humana há séculos. Este fato carrega consigo um aspecto que, em épocas mais atuais, vem despertando curiosidade, ansiedade e preocupação, principalmente depois do surgimento, e do rápido avanço, dos chatbots, como ChatGPT e similares, que tem um de seus primeiros capítulos ali na década de 60 do século XX, com versões ainda bastante rudimentares que já apresentavam efeitos um tanto surpreendentes. Atualmente, há um leque cada vez mais amplo de aplicativos de relacionamento que conquistam cada vez mais usuários mundo afora, jogando luz e revelando nuances intrincadas que permeiam os laços que vem se estabelecendo entre humanos e máquinas. Este é o ponto focal do segundo episódio do nosso podcast. Afinal de contas, seriam as máquinas capazes de amar?

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O PENSAR DO NOVO HUMANO | ENSAIO #01

por Árlan Dias Sá

O conceito de ialoceno aqui se estabelece como um método de análise da realidade, ou seja, se transforma em uma lente pela qual podemos ver o mundo, e que oferece a nós como espectadores um estranhamento do que poderia ser em outro momento considerado evidente. É através desse método que vamos analisar e, portanto, estranhar a nós mesmos.

O conceito do ialoceno pressupõe por si só que vivemos em um novo tempo, um momento em que as inteligências artificiais têm impacto sobre a existência humana. Mais do que transformar dinâmicas sociais, a inteligência artificial redefine a forma como construímos nossa própria identidade. Não somos mais como antes da existência das IAs, somos hoje como ciborgues, meio humano meio máquina. Não possuímos sistematicamente braços mecânicos ou corpos super-humanos, mas determinamos nossas capacidades de fazer, lembrar ou agir, a partir de ferramentas que possuímos, mas que são externas a nós. Minha memória não é composta mais somente pelo que lembro diretamente, mas pelas informações que deposito em um sistema de informação compartilhado chamado de nuvem. Penso que sou capaz de encontrar qualquer informação pública rapidamente, mas essa capacidade é altamente dependente de uma ferramenta de busca automatizada que está disponível em um aparelho celular ou computador. Sou, portanto, mais do que meu corpo e posso mais que minhas capacidades. Sou um híbrido humano-máquina. Sou aquilo que posso diante dessa nova realidade e posso aquilo que consigo através dessas ferramentas.

Nossas interações constantes com as tecnologias da informação têm impactado profundamente a maneira como nos construímos e existimos na realidade, conforme discutimos até aqui. Porém aqui surge uma pergunta. De que forma nos relacionamos com essas tecnologias e de que maneira elas se relacionam conosco? Grande parte das informações que consumimos através de inteligências artificiais hoje são fruto de IAs generativas e através de produções textuais, ou seja, grande parte dessas relações ocorrem através das palavras. Mas a comunicação escrita e oral não está desprovida de questões, uma vez que o sentido e significado atribuído a cada termo pode ser interpretado de forma diferente por cada indivíduo. Como sei que aquilo pelo qual me referencio é necessariamente o mesmo pelo qual outro o faz? Colocando de outra forma, como sei que o que eu entendo por liberdade, por exemplo, é o mesmo que você entende? Mesmo que tentemos explicar um ao outro nossos conceitos, possivelmente recorreremos a outras palavras que tornariam nossa tentativa de elucidação uma busca infindável com incessantes novas e tão complexas quanto variáveis, como uma hydra linguística, sempre que cortamos uma cabeça, surgem novas para combatermos. Desse modo, torna-se evidente o impacto das IAs sobre o humano no IAloceno, entretanto, a maneira como ocorre e os efeitos que ele possa vir a ter não se dão da mesma maneira em todos, mesmo quando os meios são os mesmos. Apesar da incapacidade dessa tentativa de elucidar o impacto das inteligências artificiais no Ser do humano, fica evidente o quão complexo esse processo se dá no pensamento e a magnitude com que esse impacto ocorre.

(...) híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
— Donna Haraway

MÁQUINAS PENSAM? | EP #01


Nos anos 50 do século XX, na esteira do desenvolvimento da teoria matemática da informação, cientistas imaginaram ser possível “imitar” as capacidades do cérebro humano em máquinas digitais. A esperança era tamanha que denominaram o que se tornaria, inicialmente, um novo ramo da Ciência da Computação, de “Inteligência Artificial”. Quase um século depois, surfando a onda exponencial da Lei de Moore e da aceleração crescente dos avanços tecnológicos, responsáveis pela produção desta explosão informacional, as IAs estão cada vez mais presentes em todas as esferas da nossa existência. Será que as máquinas pensam como nós pensamos?

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