TERRITÓRIO ALGORÍTMICO | ENSAIO #08

por Árlan Dias Sá

A relação do ser humano com o espaço sempre foi constitutiva de sua existência. Desde os primeiros registros geográficos de Hecateu de Mileto e Heródoto, passando pela matematização da terra por Eratóstenes e pela sistematização cartográfica de Ptolomeu, a necessidade de descrever, medir e dominar o espaço revela uma dimensão fundamental do humano: a geograficidade. A geografia não estuda apenas a relação com o espaço, mas no espaço, essa distinção sutil carrega implicações ontológicas fundamentais. O homem não apenas ocupa um lugar, ele o transforma, atribui sentido a ele, constrói território e onde houver território, como lembra a tradição geográfica crítica, haverá poder.

No entanto, o que ocorre quando o território deixa de ser apenas físico? Quando a guerra, como sugeriu Baudrillard em seu ensaio sobre a Guerra do Golfo, não se dá no deserto, mas na tela da televisão? “sólo funciona la tele, como un medio sin mensaje, mostrando por fin la imagen de la televisión pura” (BAUDRILLARD, 1991, p.68). A inteligência artificial, em sua dupla dimensão existencial, a saber, algoritmos imateriais e infraestruturas físicas, ocupa outro tipo de espaço geográfico para além da concepção tradicional: o ciberespaço. Este, entretanto, não é um não-lugar, mas um território complexo, marcado por disputas de controle, apropriação e significação. Desse modo, assim como todo território, ele é também campo de conflito e cooperação.

A IA, nesse sentido, não é neutra. Ela carrega consigo um projeto de mundo. A concentração de seu desenvolvimento em poucas corporações, majoritariamente localizadas em centros hegemônicos do Norte global, reproduz uma lógica neocolonial. Impõe-se, por meio de algoritmos, uma visão homogênea do humano, homogeneizando a diversidade cultural e antropológica características da história humana. A IA parece operar no mesmo sentido dos processos coloniais imperialistas, uma vez que suplanta a multidimensionalidade existencial em favor de uma linguagem única, uma racionalidade instrumental e singularmente uma ética do algoritmo.

Esse movimento não é apenas técnico; é também político. As big techs controlam não apenas servidores e cabos de fibra óptica, mas também as narrativas, as bolhas informacionais, as próprias condições de possibilidade do diálogo social. A promessa inicial da internet como espaço democrático deu lugar a um ambiente fragmentado, onde algoritmos de recomendação fortalecem extremos e se tornam solo fértil para a desinformação. A soberania, tradicionalmente vinculada a fronteiras físicas, é hoje desafiada por um poder globalmente territorializado e multiexistencial, que regula comportamentos, molda desejos e redefine o que é real.

Evidencia-se, então, as características fundamentais de um novo momento da história humana que necessita de uma análise crítica específica, própria do IAloceno: uma era em que a inteligência artificial reconfigura não apenas nossas ferramentas, mas a própria constituição do território simbólico. A pergunta que se impõe não é mais se a IA é capaz de imitar a linguagem humana (como discutido em textos anteriores do laboratório), mas que tipo de mundo ela está ajudando a construir. Será um mundo mais diverso, mais justo, mais livre? Ou será a consolidação de uma nova forma de imperialismo, silenciosa e algorítmica?

A tecnologia não é um fim em si mesma. Idealmente ela deve servir ao bem comum. No entanto, quando a IA é usada de forma irrestrita como conselheira íntima, como substituta do laço social, como mediadora universal, corremos o risco de abrir mão não apenas de nossa privacidade, mas de nossa capacidade de habitar criticamente o mundo.

Se a linguagem é a casa do ser, como nos alertou Heidegger, então a IA não habita essa casa. Entretanto ela pode, sim, remodelá-la por fora, tornando-a mais estreita, mais previsível, menos humana. Cabe a nós, então, não apenas regular juridicamente essas tecnologias, mas também reafirmar, com vigor filosófico e político, a importância do território como espaço de diversidade, de conflito e de sentido. Pois, no fim, a questão não é como a IA ocupa o espaço, mas como nós, humanos, resistiremos à homogeneização do mundo que ela pode provocar.

O espaço deve ser considerado como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente.
— Milton Santos (SANTOS, 2004, p.153)

Territor{I.A}lidades | EP #08


Desde os primeiros mapas de Hecateu de Mileto até as cartografias digitais atuais, a noção de território sempre acompanhou a humanidade em sua busca por compreender e organizar o mundo. O espaço deixou de ser apenas chão e fronteira para se tornar também identidade, poder e, mais recentemente, ciberespaço. No Ialoceno, esse território virtual é atravessado por algoritmos, data centers e fluxos de informação que desafiam nossas ideias de soberania e presença. Afinal, o que significa habitar um território quando ele já não é apenas físico?

Essa é a provocação do oitavo episódio do podcast do Laboratório Ialoceno, que recebe seu primeiro convidado especial: o professor e geógrafo Orlando Albani.

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LINGUAGEM ARTIFICIAL? | ENSAIO #07

por Árlan Dias Sá

A linguagem ocupa, desde sempre, um lugar central na reflexão filosófica. Ela não é apenas um meio de comunicação, mas condição constitutiva do humano, aquilo que possibilita o pensamento, a sociabilidade e a sua própria experiência no mundo. Hoje, contudo, as inteligências artificiais colocam em questão essa herança milenar ao se mostrarem capazes de manipular, reproduzir e até criar discursos de maneira convincente. A questão imediata que se abre é dupla: em que medida tais sistemas compreendem a linguagem e até que ponto essa compreensão pode ser comparada à humana? Mas ainda mais urgente se mostra a seguinte questão: de que modo o uso das inteligências artificiais impacta nossa linguagem?

Como de costume em nossos esforços investigativos, façamos primeiro um percurso cronológico que servirá de referência aos pontos de destaque e subsídio às nossas conclusões.

Começando da Grécia, Aristóteles dedicou grande parte da sua obra a compreender e desvendar as características mais essenciais da nossa existência. Através dessa investigação ontológica o autor definiu o ser humano como zoon logon echon (animal dotado de logos), indicando que a linguagem e a razão são constitutivas da vida em comunidade e, consequentemente, do humano, definido pelo mesmo também como um animal social. Não se trata, então, apenas de transmitir sons, mas de deliberar, narrar e pensar em conjunto […] O homem é o único animal que fala, e o falar é função social” (MARÍAS, 2004, p.92). 

Heidegger, séculos depois, radicaliza essa perspectiva ao afirmar que: “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam.” (HEIDEGGER, 2010, p. 8). Não somos donos da linguagem, mas nela habitamos e, de certo modo, é ela que fala através de nós. Essa concepção mostra que não pensamos fora da linguagem. Existir implica ser atravessado por palavras, significados e símbolos. É nessa dimensão ontológica que se diferencia radicalmente a experiência humana das construções algoritmo-probabilísticas das linguagens pelas inteligências artificiais, que permanecem desprovidas de intencionalidade.

A abordagem lógica também fornece ferramentas poderosas para a crítica sobre o poder da linguagem de revelar, mas também de ocultar. A linguagem instaura categorias, define o que é visível e deixa fora do horizonte o que não se pode nomear. O primeiro Wittgenstein afirma: “Os limites da linguagem (e, portanto, do pensamento) são os limites do mundo, os limites do mundo são os limites da linguagem" (2001, p.103). Isso significa que a linguagem, ao mesmo tempo em que abre horizontes, também delimita fronteiras. Mais tarde, em suas Investigações Filosóficas, em sua segunda fase, o autor amplia essa compreensão ao mostrar que: “O termo "jogo de linguagem" deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (1999, p.35). A linguagem, então, só adquire sentido através dos “jogos de linguagem” que estão inseridos em formas de vida. Essa noção mostra-se crucial para pensar a inteligência artificial, uma vez que tais sistemas podem imitar jogos de linguagem, mas não partilham a forma de vida que os torna significativos.

Em uma abordagem interdisciplinar do tema, nos direcionamos agora para Lacan, uma vez que sua psicanálise aprofunda ainda mais essa diferença e pode fornecer outras ferramentas para iluminar nosso caminho. Para ele, o sujeito não apenas fala, mas é falado pela linguagem. Nossa identidade constitui-se no tecido simbólico, nas narrativas que nos precedem e atravessam. Lacan aponta que: “o inconsciente é o discurso do Outro” (1998, p.555). O inconsciente, desse modo, é estruturado como linguagem e nos situa numa relação constante com esse Grande Outro através da lei, da cultura e da ordem simbólica que precede o sujeito e o constituem. A linguagem assume, então, característica causal na construção do sujeito. A IA, por outro lado, manipula signos sem inscrição subjetiva: não há historicidade, afetividade ou corporeidade. Seu discurso carece do que constitui a fala humana, ou seja, a relação com o inconsciente, a alteridade e a experiência encarnada. É nesse ponto que reside, segundo as ideias de Lacan, a diferença essencial entre nós, que habitamos a linguagem, e as IAs, que apenas a percorrem como superfície de dados.

O desenvolvimento e as demonstrações recentes de sistemas de processamento de linguagem natural impressiona pela fluidez das respostas, pela capacidade de imitar estilos e pela produção de textos plausíveis. Entretanto, é preciso analisarmos filosoficamente essa competência. Podemos destacar três pontos que definem o modo de ser das IAs. Como primeiro ponto, a ausência de intencionalidade: as IAs não falam de algo nem para alguém, apenas calculam probabilidades de enunciados a partir de bancos de dados. Como segundo ponto, a carência de horizonte hermenêutico: não há vivência, historicidade ou contexto existencial que dê densidade ao que é dito. Como terceiro e último ponto, a neutralidade ilusória: as IAs carregam em seus dados os vieses de quem as programou e do material de onde aprenderam, sem consciência crítica desses processos.

Desse modo, o discurso das IAs é uma simulação convincente, mas não uma fala no sentido pleno. Trata-se de uma performance técnica que, embora útil, permanece distante da experiência simbólica e ética que constitui a linguagem humana.

A dimensão ética da linguagem, destacada por Levinas, é talvez o ponto mais decisivo nesta análise. Para ele, falar é sempre encontro com o outro, exposição e responsabilidade, como destaca o autor: “Dizer é aproximar-se do próximo, «dar-lhe significação» (...) o sentido ético de uma tal exposição a Outrem pressuposto pela intenção de fazer sinal - e mesmo pela significação do signo - é, desde já, visível” (LEVINAS, 2011, p.68). A linguagem é antes de tudo relação ética, anterior até ao ontológico. Na inteligência artificial, esse eixo se faz inexistente de ambas as partes, o que se apresenta é uma funcionalidade algorítmica, incapaz de sustentar uma relação genuína de alteridade.

A reflexão filosófica sobre a linguagem desvela sua essência enquanto condição, limite e possibilidade. Condição, porque estrutura o humano. Limite, porque define fronteiras do discurso. E possibilidade, porque abre espaço para a alteridade e para a transformação. As inteligências artificiais, embora demonstrem notável capacidade de manipular a forma da linguagem, permanecem restritas ao plano da simulação técnica. Elas não compreendem, não experienciam, não assumem responsabilidade nem são impelidas eticamente. O risco contemporâneo é confundir performance algorítmica com fala humana, reduzindo a linguagem a um mero cálculo de probabilidades e suspendendo a criticidade sobre o discurso.

Fica evidente, desse modo, a necessidade de manter viva a riqueza da linguagem ao fortalecer e evidenciar sua dimensão simbólica, histórica e ética. Isso implica reconhecer que, por mais sofisticadas que sejam, as inteligências artificiais não habitam a “casa do ser”. Elas podem percorrer suas paredes, mas não viver nelas. A pergunta que surge sob as lentes do Ialoceno, então, é: qual o impacto das inteligências artificiais na dimensão simbólica, histórica e ética da linguagem humana? 

É a faculdade de falar que faz o homem como homem. Este traço é o perfil de seu ser.
— HEIDEGGER, 1979, p. 191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. rev. São Paulo: Centauro, 2005. 1. reimpr. 2010.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LEVINAS, Emmanuel. De outro modo que ser ou para lá da essência. Tradução de José Luis Pérez e Lavínia Leal Pereira. Revisão científica e apresentação de Cristina Beckert. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.

MARÍAS, Julián. História da filosofia. Prólogo de Xavier Zubiri; epílogo de José Ortega y Gasset. Tradução de Claudia Berliner; revisão técnica de Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. Introdução de Bertrand Russell. 3. ed. Texto bilíngue: alemão-português. São Paulo: Edusp, 2001.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).

Máquinas falam? | EP #07


Desde os diálogos de Platão e Aristóteles, a linguagem ocupa um lugar central na tentativa humana de compreender e organizar a realidade. Foi pela palavra que aprendemos a classificar, argumentar, persuadir e, sobretudo, comunicar aquilo que nos constitui como espécie. Séculos depois, pensadores como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche questionaram se a linguagem seria apenas uma estrutura lógica ou se nasceria, antes, da paixão, da vontade e do desejo de existir em comum. Hoje, diante dos grandes modelos de linguagem, nos perguntamos: o que, afinal, as máquinas dizem quando parecem falar?

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ALTERIDADE NO IALOCENO | GEN #02


Ferramentas criadas por nós como humanidade resultam em implicações na maneira como lidamos com elas e com seus efeitos sobre nossa espécie. Isso é verdade para todas as nossas criações e, apesar de esse impacto não ocorrer da mesma forma nem com a mesma magnitude em toda criação, de alguma forma, ele ocorre. Como exemplo, podemos pensar no desenvolvimento de armas de fogo. De forma direta e simplista, podemos compreender as armas como ferramentas que dependem exclusivamente do uso que fazemos delas, entretanto, sua existência em si, independente do seu uso, implica questões morais, políticas, econômicas, culturais, etc. Ou seja, independentemente da maneira como utilizamos essas ferramentas, ou se as utilizamos, sua simples existência, mesmo que não intencional, já resulta em consequências irreversíveis na forma como nos organizamos, comportamos, planejamos, tememos, sentimos etc. Em suma, na maneira como se faz a existência humana após o surgimento, nesse caso, das armas de fogo. 

Desse mesmo modo, a simples (apesar de profundamente complexa) existência das IAs já resulta em implicações que vão para além da maneira como somos afetados. O Ialoceno se propõe, então, como consequência de sua própria forma de ser, a funcionar não apenas como instrumento de análise, mas também como fornecedor de ferramentas – decorrente da própria leitura pela ótica do Ialoceno – que auxilie na compreensão mais aprofundada do modo como lidamos com essa tecnologia. Nesse momento, então, vamos nos dedicar a refletir e desenvolver ideias acerca da postura ética no Ialoceno, decorrente da forma como as IAs se apresentam a nós, como interagimos com elas e quais as preocupações emergentes dessa relação.

ACERCA DA ÉTICA NO IALOCENO

Podemos definir que a história da humanidade é a história da sua relação com a natureza. Assim como nos adaptamos aos diferentes lugares que habitamos, também os transformamos para que atendam melhor às nossas demandas. Então, podemos dizer também que a história humana é a história da manipulação da natureza pela humanidade. A domesticação de animais e plantas, arado, escrita, medicina, energia a vapor, energia elétrica, aviação, ondas de rádio, fusão nuclear, internet, entre outros, são alguns exemplos dessa nossa capacidade. 

Sempre que alguma nova maneira de controlar o meio à nossa vontade surge, com ela desenvolve-se uma forma de identificarmos essa transformação. Sua identidade pode se desenvolver pela forma como ela ocorre, ferramentas associadas a ela, nossa relação com ela ou seu efeito. A domesticação de animais, por exemplo, pode ser representada pelo pastor. O arado por si só já é um objeto identificável e dotado de identidade. A escrita se apresenta como símbolos metodicamente organizados e compreensíveis dadas instruções prévias, mas também pode ser representada hoje por livros. A medicina possui um símbolo próprio derivado (no ocidente) no caduceu de Hermes, mas pode ser também identificada pela cruz vermelha ou por instrumentos do seu labor como o estetoscópio. A energia a vapor frequentemente é representada pelos trens movidos por ela, mas também pode ser representada por um forno com câmara de pressão. A energia elétrica é representada por raios ou por instrumentos pelos quais ela é transportada, como postes, fios elétricos ou caixas de luz. A aviação é representada e reconhecida pela sua criação primeira de transporte, o próprio avião, mas também pode ser representada pelas asas do mesmo avião. As ondas de rádio são representadas pela sua forma de propagação (sequência de ondas crescentes) ou pelos seus instrumentos de captação e reprodução como antenas e o próprio equipamento de rádio. A fusão nuclear é facilmente reconhecida pelo símbolo da radiação ou, nos casos de armas de guerra, pelo cogumelo nuclear (resultado direto do seu uso). A internet é representada frequentemente pelo resultado direto do seu uso popular, a globalização, ou seja, pelo globo terrestre circundado por linhas aéreas. Em suma, toda nova invenção possui uma “cara”, um símbolo reconhecível e com sentido que é fruto de seu uso, interpretação, impacto ou modos de manuseio.

As inteligências artificiais, entretanto, se encontram em um lugar diferente de tudo que já criamos até agora. Ela não possui uma “cara” para além do seu próprio nome, ou a abreviação dele – IA. Poderíamos pensar que a internet ou o rádio tenham encontrado o mesmo problema no seu surgimento, entretanto, mesmo essas criações imperceptíveis aos nossos sentidos, precisavam de um meio físico que passou a existir junto da sua criação, como o rádio e os computadores. 

Aqueles mais atentos podem pensar que os computadores já existiam antes da internet, entretanto, a infraestrutura e modos de uso dos computadores só se popularizaram após o surgimento dela, então suas representações se misturam no imaginário, bem como a ideia de uma conexão “invisível” entre os computadores do mundo, remetendo quem pensa nela a uma teia interconectada de computadores ao redor do mundo, daí seu símbolo. Mas as IAs encontram um novo contexto, onde computadores já estão estabelecidos na cultura humana, conceitos como a “nuvem” já estão difundidos e possuem identidade, por isso, essas representações não podem mais ser associadas exclusivamente às IAs. O “corpo” da IA não é somente dela, esse meio físico pelo qual ela existe já possui uma identidade e foi apropriado por outras invenções humanas como parte do seu existir.  

A forma como as IAs se apresentam também é muito diversa  (imagem, texto e algoritmo, por exemplo) e distinta entre si, tornando difícil imaginar uma identidade derivada da sua utilização, bem como os resultados dessas aplicações. As diversas instituições que as criam também têm símbolos distintos, destacando-se, cada uma, pela sua forma de uso dessa tecnologia. 

As IAs surgem com um problema de identidade no imaginário do usuário, o que resulta, por sua vez, em problemas na forma como nos relacionamos com elas. Logo surge uma pergunta importante: qual, então, é o “rosto” da IA? Atualmente, a resposta direta é que ela não tem “rosto”. A sigla IA é utilizada junto de imagens que misturam o cérebro ou redes neurais com chips ou engrenagens, entretanto, esses símbolos não passam de tentativas de representar a forma como algumas delas funcionam, além de serem tanto diversos quanto inconsistentes. Existe, porém, alguma implicação dessa falta de um símbolo, “rosto” ou “corpo” que materialize essa “coisa” que é a IA? E essa ausência pode ter impacto sobre nós?

Para responder a essa questão, vamos explorar os estudos éticos desenvolvidos por Emmanuel Levinas. Segundo o autor, a ética é a manifestação primeira do espírito humano, anterior à ontologia, e decorre do encontro com o outro em sua radical alteridade. Isso ocorre por meio do rosto do outro, que não é apenas a aparência da sua forma física, mas a expressão viva de uma vulnerabilidade que me convoca à responsabilidade. É pela presença do outro que me reconheço como sujeito ético. Sou interpelado por sua existência e, antes mesmo de qualquer escolha racional, sou chamado a agir de forma responsável pelo outro. Antes que o ato de matar, como exemplo, seja compreendido por mim como algo errado pelo caminho da razão, surge bruscamente o rosto de quem será morto, ele promove em mim o apelo para que não mate, antes mesmo do raciocínio. A ética da alteridade, nesse sentido, revela que o fundamento da subjetividade está na responsabilidade incondicional pelo outro. Sem o outro, não há, portanto, condição para se fazer o agir ético.

A ética como a manifestação humana primeira implica, pois, sua relação com qualquer outra manifestação. Aqui surge, então, a necessidade de uma urgente investigação da relação entre ética e IA. Como apontado acima, a ausência de “rosto” nelas resulta, em primeira instância, na não necessidade de agir eticamente por parte de quem a manipula, uma vez que somente pela percepção do outro seríamos impelidos a agir. O conceito desenvolvido por Levinas aborda a relação entre seres humanos, logo, a ausência de um rosto nas máquinas não seria uma questão nova, uma vez que qualquer ação que ocorra de forma mecânica e isolada teria o mesmo efeito, entretanto, o outro nesse contexto seria aquele que é impactado pela IA, ou seja, o usuário. O que se apresenta como novidade, aqui, é o fato de nem usuários nem programadores se conectam através das IAs pela sua própria característica, uma vez que a relação entre desenvolvedor e usuário é impessoal, atravessada por uma distância física e logística. O desenvolvedor, nesse contexto, se relaciona muitas vezes somente com a IA. Mesmo quando na relação com humanos em um modelo empresarial, a estrutura hierárquica guiada por decisões de terceiros não representa uma conexão que condicione o agir ético. O trabalho, portanto, se torna uma fragmentada parte alienada da estrutura que resulta no impacto sobre os usuários. 

O impacto dessa tecnologia, então, apesar de real, não é evidente de forma direta. Quando alguém usa uma IA para produzir uma imagem, por exemplo, as relações algoritmo-probabilísticas ficam inacessíveis (a depender dos modelos de linguagem) até mesmo para quem programa, por exemplo, deep learning. Tanto o usuário quanto o programador não estão diante de rostos quando utilizam as IAs, logo, não são impelidos a agir eticamente. Apesar de os efeitos do seu uso resultar em implicações éticas, as decisões e maneiras pelas quais ocorrem não têm por base uma necessidade de agir eticamente. 

As IAs, entretanto, não se caracterizam apenas como programas de computador ou ferramentas digitais tais como conhecemos até então. Sua peculiaridade encontra-se, também, na forma como os usuários interagem. Uma ferramenta digital como conhecemos antes da IA, funciona como um meio pelo qual a interação ocorre. Um site é abastecido por pessoas e consumido por pessoas. Uma rede social conecta usuários que a abastecem com conteúdos. Ferramentas de pesquisa que possibilitaram o acesso a “qualquer conhecimento de forma imediata”, mas necessitavam que esse conhecimento fosse fornecido por alguém e encontrado por outro alguém. Mesmo de forma indireta, o usuário compreende que tais informações foram construídas e disponibilizadas por alguém.

Quando surgiram as primeiras IAs, elas atuaram manipulando e direcionando (através dos algoritmos) conteúdos produzidos e abastecidos, ainda, por humanos. As IAs generativas, entretanto, possuem como característica inédita a capacidade de produzir respostas que não passaram por humanos em outra via. Sabemos que todas as respostas que elas possam vir a gerar são, de algum modo, uma cópia de algo que um humano já tenha produzido, ou seja, nada que ela produz é de fato original, seu banco de dados é abastecido, primeiramente, com produções humanas. Entretanto, a própria maneira como essa interação ocorre já caracteriza uma mudança na forma como somos impactados por elas, uma vez que essa interação deixa de ser mediada por uma máquina e passa a ser com uma máquina que não possui corpo nem rosto. Não somos mais, então, impelidos a agir de forma ética.

Nossa expressão primeira, a ética, perde espaço e atrofia-se. Quando usamos IAs, qualquer consequência proveniente de diálogo (com ela) ou escolha (através dela) é refletida somente quando diante da possibilidade de que um outro venha a conhecê-las. Só então somos confrontados. Nesse momento passamos a refletir sobre o assunto de forma crítica, o que, por sua vez, transforma esse espaço em um ponto de vulnerabilidade. Como um retrato distorcido de um agir irrestrito. Uma caricatura da irresponsabilidade do pensamento desprovido de sua implicação ética no social.

Assim como outras características do Ser do humano, a ética se desenvolve na prática. Quando agimos em sociedade somos confrontados,  a todo momento, com decisões que impactam (em diferentes níveis) outras pessoas. Ao agirmos com recorrência no coletivo, somos confrontados com as condições para o surgimento do fazer ético diante de rostos. Quando perdemos esse espaço e transformamos o modo como convivemos, necessariamente transforma-se também a maneira como a ética se desenvolve. 

A magnitude do impacto das IAs sobre a humanidade, entretanto, se mostra inédita na realidade contemporânea, uma vez que nunca antes uma tecnologia esteve presente em tantos níveis da sociedade humana influenciando com a intencionalidade de quem as desenvolve para determinados fins. Somos bombardeados por propagandas e informações que chegam a nós por algoritmos. Pesquisamos através de ferramentas que se utilizam de algoritmos para indicar respostas. Produzimos conteúdos audiovisuais e materiais de leitura através de modelos generativos. Buscamos respostas para inquietações e nos aconselhamos com esses mesmos modelos generativos. Entretanto, nenhuma dessas atividades nos faz ser impelidos a agir eticamente. Essa dinâmica transforma a maneira como nos desenvolvemos eticamente.

Toda criação humana carrega consigo um impacto inevitável sobre aqueles que a testemunham e dela participam. Seja esse impacto benéfico ou prejudicial, as respostas humanas dependem do modo como se compreende a natureza e o alcance daquilo que foi criado. O surgimento de uma tecnologia, por si só, não é sinônimo de ameaça. O perigo nasce quando seu uso e seu desenvolvimento se dão sem reflexão. Sobretudo, quando ela deixa de ser aprimorada com vistas à melhoria da condição humana.

A partir dessa perspectiva, discutimos a ética do Ialoceno. Longe de ser inferior a qualquer ética anterior, ela apresenta características próprias e singulares, que exigem um modo igualmente singular de pensar. Tal reflexão precisa considerar as condições específicas em que as IAs existem, são utilizadas, afetam as pessoas e moldam a compreensão que temos da realidade. Entre elas, a ausência de corpo e identidade da IA, assim como a ausência de interação humana direta e de um “rosto” capaz de interpelar eticamente, de despertar imediatamente a responsabilidade pelo outro.

Essa ausência, contudo, não deve se converter em atrofia ética. Ao contrário, demanda a construção deliberada de formas de relação que permitam ao ser humano desenvolver-se eticamente mesmo sem a presença física do outro que o despertaria espontaneamente à responsabilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LEVÍNAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

Responsabilidade de quem? | ENSAIO #06

por Árlan Dias Sá  

A ética, enquanto campo fundamental da filosofia, se preocupa com a investigação dos princípios que orientam a ação humana, refletindo sobre o que é bom, justo, devido, etc. Aristóteles destaca-se como um dos primeiros nomes no campo, para o autor, a ética aparece como um exercício prático enraizado na vida da polis. A excelência ética não é apenas uma qualidade interior inata, mas uma prática pública e racional, orientada pela finalidade do ser humano, ou seja, a eudaimonia, a plenitude da vida virtuosa. A virtude, segundo ele, é adquirida por hábito, por praticar a prudência, pelo exercício de equilíbrio entre os excessos e as ausências. A ética aristotélica é, portanto, inseparável da dimensão política, pois o indivíduo só pode ser plenamente ético no convívio com os outros, em uma comunidade justa. Sua filosofia serviu de inspiração para o debate ético no campo da filosofia para todos os autores posteriores à ele, seja na concordância ou na refutação de suas ideias. Séculos depois, já na modernidade, surgem duas linhas dicotômicas quanto à abordagem da Ética. A primeira, é marcada por Immanuel Kant, que reformula radicalmente a ética ao deslocá-la da experiência empírica e da finalidade prática para o campo da razão pura. Sua ética define-se como deontológica, ou seja, o que importa não são as consequências das ações, mas a intenção moral que as orienta. Essa ideia é evidenciada no princípio fundamental da moral kantiana: o imperativo categórico. Nele, fica estabelecido que todas as ações devem ser feitas segundo máximas que possam ser universalizadas:“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1980, p. 129). Manifesta-se, então, a ideia do "reino dos fins", toda ação deve ser tomada como fins em si mesmos, jamais como meios. O dever, para Kant, não se curva a interesses ou afetos, mas obedece à lei moral inscrita na razão. Nesse mesmo contexto, o utilitarismo aparece de forma diametralmente oposta à deontologia. Através de autores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, a ética torna-se teleológica: o bem reside nos fins. Mas que fins são esses? Especificamente na maximização da felicidade ou do prazer. Trata-se de uma forma de consequencialismo, onde o valor moral das ações depende de seus resultados. Surge assim o cálculo hedônico na tentativa de quantificar prazeres e sofrimentos para orientar decisões. Essa ética é pragmática, voltada à promoção do bem-estar coletivo, tentando utilizar a lógica das ciências naturais aplicadas à ética no intuito de garantir maior precisão e cientificismo no processo de tomadas de decisões.

Como resultado da reverberação da ética deontológica e utilitária, o direito, a política, e as demais formas de organização social constituíram suas concepções de justiça, valor, etc. Mas a ética não deixou de ser um campo de disputa por isso. Diante dos horrores do século XX, em especial, com a contemplação da magnitude da bomba atômica, Hans Jonas propõe um novo paradigma ético. A técnica moderna deu ao ser humano um poder inédito de intervenção no mundo e nos próprios fundamentos da vida: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47). Por isso, Jonas afirma que os modelos éticos tradicionais já não bastam: nasce a necessidade de um Princípio Responsabilidade, que oriente a ação humana com base na preservação da vida futura: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra”. Esse princípio, longe de ser um apelo ao medo irracional, fundamenta-se em uma heurística do medo: diante do risco de destruição irreversível, o temor pode se tornar um guia racional da prudência. O “fim” e o “valor” se deslocam da autorrealização do indivíduo para a continuidade da existência humana. Jonas conecta as noções de bem, dever e ser. A ética não pode mais ser apenas normativa ou idealista, precisa considerar o ser real, finito, vulnerável. Daí deriva sua concepção de responsabilidade total: não apenas responsabilidade por filhos ou concidadãos, mas por toda a humanidade, inclusive a ainda não nascida. Isso implica, também, uma nova abordagem à tecnologia. A existência das inteligências artificiais colocam essa questão no centro do debate de forma complexa e inédita. Se elas podem tomar decisões autônomas, quem responde por suas consequências? Quando seus criadores morrem ou suas intenções se perdem com o tempo, permanece a dúvida de quem é o responsável? As IAs, por si só, podem ser consideradas responsáveis? Teriam elas consciência, intencionalidade e liberdade, ou seja, poderiam elas ser julgadas pelos critérios tradicionais? Ou precisamos inventar novos conceitos de responsabilidade e novas formas de julgamento e condenação?

Essas questões nos conduzem a um novo espaço lógico de discussão: O impacto ético da convivência humano-máquina, não apenas no plano técnico, mas nas relações interpessoais e sociais. Quando um assistente virtual orienta decisões médicas ou jurídicas, ou quando carros autônomos tomam decisões de percurso ou postura em acidentes inevitáveis, sua influência é real, ou seja, não estamos mais discutindo questões teóricas de um futuro idealizado, mas dilemas reais de um ente em atuação direta e indireta. Como medir, prever e regular esse impacto? Isso é possível? Como julgamos seus erros? Que tipo de justiça é possível numa sociedade em que a ação moral não é mais exclusividade ou diretamente humana? Estamos na borda de uma revolução ética, ou seja, a passagem de uma moral centrada no sujeito para uma moral distribuída entre humanos e não-humanos. Nessa nova visão de tempo, a consciência de uma real justiça, fundada não apenas em direitos e deveres individuais, mas em redes de responsabilidades compartilhadas, torna-se inevitável e necessária. Precisamos, portanto, urgentemente, repensar os conceitos de bem, dever, ente e Ser, de forma adequada a nossa realidade como se manifesta, em que a técnica não é apenas instrumento, mas coautora da história.

O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir.
— Hans Jonas
“Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer.
— Hans Jonas

Quem é responsável pela escolha da máquina? | EP #06


Nas últimas décadas, nossa capacidade técnica se expandiu de forma acelerada, alterando profundamente o modo como vivemos, interagimos e projetamos o futuro. Diante desse cenário, uma pergunta surge com urgência: como pensamos a ética em tempos de inteligência artificial? No quinto episódio do Ialoceno, voltamos o olhar para a obra do filósofo Hans Jonas, que, em pleno século XX, já nos alertava sobre os riscos de um poder tecnológico desvinculado da responsabilidade. Hoje, suas ideias dialogam diretamente com os dilemas que envolvem o avanço das IAs: da dignidade humana à responsabilidade intergeracional, passando pelo risco de desumanização e pela crítica à neutralidade da ciência. Estamos desenvolvendo tecnologias que respeitam a vida humana autêntica? Podemos definir as IAs generativas como responsáveis por suas escolhas?

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Intento, ergo sum? | ENSAIO #05

por Árlan Dias Sá  

A filosofia se distingue das demais formas de conhecimento justamente por seu trato rigoroso com os conceitos. Ao contrário do senso comum, que opera muitas vezes por aproximações vagas e por associações imediatas, a filosofia busca elaborar conceitos precisos, capazes de apreender e explorar as estruturas profundas da realidade. Entre esses conceitos, poucos são tão centrais quanto o de intencionalidade, cuja compreensão atravessa séculos de pensamento filosófico, desde Aristóteles até os dilemas colocados pelas Inteligências Artificiais hoje. 

Intencionalidade, no vocabulário filosófico, não deve ser confundida com a noção cotidiana de “ter uma intenção”, como esperar ou desejar que algo aconteça. No senso comum, a intenção é frequentemente compreendida como expectativa ou previsão de um resultado, quase sempre imersa em uma lógica consequencialista. No entanto, na tradição filosófica, é em Aristóteles que encontramos os primeiros fundamentos do que seria uma estrutura fundamental da consciência, ao pensar o intelecto como algo que “se torna todas as coisas” ao conhecê-las. Essa potência do espírito, foi desenvolvida posteriormente na Escolástica, onde a intencionalidade foi compreendida como um direcionamento essencial interno da nossa mente para algo, seja um objeto físico externo, um conceito abstrato ou uma realidade metafísica interna. Como um dos últimos representantes já na modernidade desse movimento intelectual, temos Francisco Suárez, que refinou a intencionalidade constituindo fundamento para a noção de que a mente não é um receptáculo passivo de impressões, mas um movimento ativo em direção ao ser. A consciência, então, demonstra-se, não ser jamais neutra. Ela é, por definição, intencional, dirigida para o mundo. Apesar desses avanços geniais, é somente com Edmund Husserl que ocorre um salto decisivo da constituição desse conceito. O autor traz a intencionalidade para o centro da reflexão fenomenológica. Para Husserl, toda consciência é consciência DE algo. Isso não apenas reafirma a tese clássica, mas aprofunda o conceito ao definir que a realidade não é dada “em si”, mas é constituída na correlação entre a consciência e o mundo. A análise da intencionalidade torna-se, assim, um método privilegiado para compreender não apenas os atos mentais, mas o próprio modo como o mundo se mostra à experiência.

A intencionalidade, no entanto, não permanece um fenômeno puramente mental no debate filosófico. Martin Heidegger, ao retomar e reformular as categorias da fenomenologia, direciona a discussão para o aspecto do ser-no-mundo. Para ele, a intencionalidade não é apenas uma direção da consciência, mas uma manifestação existencial do Dasein, ou seja, o ente que se questiona sobre o seu próprio ser. Assim, não há intencionalidade fora de um mundo, fora de um horizonte de sentido no qual o existir se dá de modo autêntico ou inautêntico. A intencionalidade, nesse quadro, não é apenas uma ação da consciência, mas um modo de ser. Discutir a intencionalidade, portanto, é discutir a própria consciência. E se a consciência é esse movimento direcionado e aberto ao mundo, é inevitável que a discussão contemporânea sobre a intencionalidade das inteligências artificiais nos leve a um questionamento mais profundo: as máquinas, possuem alguma forma de intencionalidade? Estariam elas também na margem de desenvolver uma consciência?

A pretensão do presente ensaio foge um pouco do escopo do Ialoceno, mas corresponde à problemática mais ampla que temos desenvolvido até o momento. Se assumirmos como verdade que a intencionalidade não é apenas um conteúdo mental, mas um modo fundamental de se relacionar com o mundo, então a análise da IA contemporânea deve considerar não apenas sua funcionalidade, mas o modo como ela se manifesta no mundo. Sistemas inteligentes processam dados, tomam decisões, respondem a estímulos, e até mesmo “aprendem” com a experiência. Mas fazem isso como resultado de algoritmos, sem que necessariamente possuam um “mundo” no qual estão imersos, não possuem um Dasein, não se manifestam de modo autêntico no sentido existencial proposto por Heidegger. A pergunta, então, torna-se mais sutil: a IA manifesta uma intencionalidade artificial? Ou seria sua ação apenas simulada, sem uma verdadeira direção consciente ao mundo? Então, o que significa dizer que algo é "consciente" se removermos dessa definição a intencionalidade como estrutura constitutiva? É possível falar de consciência sem esse elemento? Infelizmente para nós, nesse breve ensaio, não podemos responder nenhuma dessas questões sem um profundo mergulho na autenticidade da consciência. 

Para esse momento, podemos afirmar que independentemente da abordagem clássica, fenomenológica ou existencial, o conceito de intencionalidade nos força a reconhecer que não é possível falar de consciência sem falar do modo como essa consciência se direciona, se projeta, se lança no mundo. E, portanto, pensar a inteligência artificial a partir da intencionalidade não se resume apenas em perguntar se as máquinas “pensam”, mas sobretudo se existem de modo intencional, se constituem um mundo, e se são, por isso, portadoras de alguma forma de consciência. Desse modo, a filosofia, ao precisar e desenvolver o conceito de intencionalidade, oferece uma lente poderosa não apenas para compreender a mente humana, mas também para lançar uma luz sobre as questões mais urgentes da contemporaneidade, as fronteiras entre tecnologia, consciência e existência.

Cogito, ergo sum.
— René Descartes

As máquinas possuem intencionalidade? | EP #05


Desde os primeiros lampejos do pensamento filosófico, a pergunta sobre o que move os seres humanos tem atravessado séculos: o que nos faz agir, desejar, criar, comunicar? Seriam os deuses, a razão, os afetos, ou algo mais profundo ainda — uma intenção que pulsa no centro da consciência? Com o avanço da técnica e a emergência das inteligências artificiais, essa pergunta ganha novas camadas que constituem as problemáticas e reflexões do Ialoceno. Quando máquinas começam a simular linguagem, decisões e comportamento, ainda estamos falando apenas de códigos? Ou estamos, de alguma forma, imprimindo nelas parte daquilo que antes julgávamos exclusivamente humano? No quinto episódio do Ialoceno, buscamos elucidar ao menos a superfície desse complexo e nebuloso problema da identidade das IAs refletindo acerca da intencionalidade como constitutivo existencial: Afinal, as máquinas intencionam?

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CR{IA}TIVIDADE HUMANA? | ENSAIO #04

por Árlan Dias Sá  

A relação entre inteligência artificial e criatividade humana reacende notórias angústias e dilemas filosóficos presentes desde a antiguidade. Platão, por exemplo, estabeleceu bases metafísicas que serviriam de sustentação para séculos de discussão sobre o tema, e ainda hoje exerce forte influência sobre esse debate. O filósofo via a criação como imitação, ou seja, meras reproduções imperfeitas, finitas e mutáveis de suas Formas ideais, presentes no mundo das ideias, como sombras da realidade. Nietzsche, por sua vez, defendia a invenção de novos valores, criticando a tradição platônica e rompendo com a ontologia metafísica da interpretação, reprodução e atuação na realidade. Apesar do tempo e esforços, a pergunta ainda persiste: é possível criar algo verdadeiramente novo? Quando as IAs operam a partir de um comportamento probabilístico estatístico (alimentando-se de dados pré-existentes, gerados por nós mesmos), elas parecem intensificar a própria contradição que as sustenta. Sua presença, nesse contexto, contribui para esclarecer ou para obscurecer esse problema?

Para nos auxiliar na discussão, vislumbremos a realidade através dos olhos da filosofia. Deleuze, por exemplo, diria que a originalidade não está no surgimento ou criação de algo a partir do nada, mas na diferença, ou seja, o novo não se define por romper completamente com o passado, mas por produzir variações, desvios, diferenças em relação ao que já foi dito, feito, pensado, conhecido, sabido ou dominado. 

Desse modo, as IAs podem ser criativas de acordo com a teoria de Margaret Boden, ou seja, no sentido combinatório: sem criar elementos novos, mas reorganizando aqueles já existentes de forma inédita e surpreendente. Ou no sentido exploratório: testando os limites da cadeia de permissões e restrições pré-estipuladas pelas regras, mas sem romper as premissas fundamentais. Porém, elas encontram uma limitação quanto à sua capacidade de transformar. Elas não rompem com paradigmas, apenas articulam aqueles criados por nós e fornecidas a elas. Fica, portanto, evidente que dilemas conceituais como a angústia da influência abordada por Bloom, também se aplicam às máquinas: elas "aprendem" a partir de obras humanas, mas não têm a intencionalidade no processo de criação. Não são capazes de produzir novos significados, somente reproduzi-los. Nesse sentido, assim como a fotografia não matou a pintura, mas forçou-a a transcender o mimetismo, com as IAs, a arte, por exemplo, pode se libertar do paradigma da técnica repetitiva, direcionando e explorando ainda mais o espírito criativo humano, que permanece insubstituível em sua essência de duvidar, questionar, subverter e atribuir novos significados à existência.

Concluímos, então, com essa breve reflexão, que as IAs manifestam-se como entes teleológicos, ou seja, são um meio, não um fim. Entre seus impactos mais evidentes, estão a superação do limite humano quanto ao domínio da técnica, possibilitando que o humano se desenvolva através de novas habilidades de criação e manipulação de ideias. E nos fazer repensar nossa própria identidade, reafirmamos nossa condição e identidade ontológica através de questões como por exemplo: o que é genuinamente humano na criação? Talvez essa resposta esteja na capacidade de gerar intencionalidades, na construção de mitos para dialogar com dilemas, na coragem de transformar regras anteriormente estabelecidas e até então inquestionáveis, ou na capacidade de levantar questões acerca da própria existência como condição, ou seja, perguntar porque estou aqui? Qual meu propósito? Qual a razão de existir? Algo que, por enquanto, ainda se mostra uma característica exclusivamente humana.

A criatividade é uma maravilha da complexa, mas não, au fond, tão misteriosa mente humana.
— Livre tradução e interpretação de Boden, 2004.

Máquinas são capazes de criar? | EP #04


Durante séculos, a criatividade foi considerada uma das marcas mais misteriosas e preciosas da condição humana — a capacidade de criar mundos, imaginar o que não existe, combinar o inesperado. Artistas, inventores e pensadores foram vistos como canais de algo que transcende a simples repetição ou reprodução. No entanto, nos últimos anos, testemunhamos algoritmos que escrevem poemas, compõem músicas, pintam quadros e até projetam inovações tecnológicas. Seria isso criatividade? Ou apenas um reflexo estatístico de padrões já existentes? Quando uma máquina “cria”, o que está realmente acontecendo? No quarto episódio do Ialoceno, entramos no território turvo entre cálculo e invenção, entre dados e devaneios, para refletir sobre um dos dilemas mais fascinantes da era digital: máquinas podem criar?

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Aprendendo artificialmente a ser inteligente | ENSAIO #03

por Árlan Dias Sá 

No contexto do ialoceno, a educação enfrenta um paradoxo: formar indivíduos autônomos em um mundo onde a tecnologia redefine a própria noção de aprender. A modernidade líquida (Bauman), com sua fluidez e incertezas, exige habilidades que transcendem a acumulação de informações. O objetivo educacional desloca-se do saber para o saber aprender, priorizando pensamento crítico e autonomia ética, como defendem Freire, Dewey e Morin. Esses autores destacam que a educação deve ser um processo dialógico, onde o aluno, contextualizado em sua realidade, constroi conhecimento através da interação crítica com o mundo.

A neurociência, como exemplo da magnitude do impacto das IAs, revela que o aprendizado é um fenômeno bioquímico e social: criar redes neurais demanda estímulos variados, desde práticas motoras até reflexões teóricas. Aprender a ler, por exemplo, modifica estruturas cerebrais, como demonstra Stanislas Dehaene, gerando uma "caixa de letras", estrutura inexistente no cérebro antes da alfabetização. No entanto, as respostas instantâneas, oferecidas pelas IAs generativas por exemplo, ameaçam virtudes intelectuais como perseverança e rigor investigativo, essenciais para a maturidade cognitiva. O acesso fácil à informação cria uma ilusão epistêmica: o indivíduo confunde a capacidade de ter acesso com o saber, distorcendo sua autoimagem como "ciborgue" que domina o conhecimento, quando, na verdade, utiliza-se de próteses cognitivas para afirmar-se como conhecedor.

Nesse contexto estimula-se o protagonismo do aluno, exigindo pedagogias que partam de seus contextos e interesses, como propõe Freire. Contudo, o ialoceno amplifica riscos como a arrogância epistêmica: o efeito Dunning-Kruger mostra que conhecimento superficial gera confiança excessiva, exigindo a humildade socrática (reconhecer a própria ignorância) como antídoto. As IAs, embora úteis, não substituem a mediação docente. O professor reforça seu papel como referência ética e intelectual, guiando o aluno na articulação de saberes, equilibrando ferramentas tecnológicas com reflexão crítica.

As escolas, por sua vez, precisam abandonar modelos "arcaicos" e tornar-se espaços de cultura tecnológica, onde as IAs são ferramentas  e não os fins do aprendizado. A analogia com o trânsito ilustra a urgência: assim como os carros exigem regras, a tecnologia demanda alfabetização digital e consciência ética para evitar danos como desinformação ou dependência, potencializando as soluções e não os problemas. Projeta-se então uma utopia educacional: ambientes colaborativos, com turmas menores e recursos que estimulem resolução criativa de problemas, preparando alunos para desafios inéditos.

Nesse cenário, o educar redefine-se como desenvolvimento de habilidades, funcionando como caixa de ferramentas para construir soluções de forma ética e crítica acerca da realidade. Seu cerne não é dominar conteúdos, mas cultivar integridade, colaboração e habilidades, garantindo que as IAs amplifique, mas não substitua, a potência crítica e ética do ser humano. O futuro exige equilíbrio: máquinas como extensões da mente, professores como referências morais e intelectuais, e alunos como arquitetos de um saber que transcende algoritmos.

Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.
— Platão - Apologia de Sócrates
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA, LEIA AGORA O ENSAIO COMPLETO.

Máquinas que não pensam podem ensinar? | EP #03


Desde a Antiguidade, ensinar sempre foi mais do que transmitir informações: era formar, orientar, criar vínculos e transformar. Mestres e aprendizes compartilham tempos, afetos e experiências — num processo que envolve escuta, interpretação e, sobretudo, intenção. Com a chegada das inteligências artificiais generativas, sistemas cada vez mais sofisticados são capazes de produzir textos, corrigir exercícios, sugerir atividades e até simular interações educativas. Mas há algo nesse processo que resiste à automação: o encontro humano. Quando uma IA responde a uma pergunta ou propõe um caminho de aprendizagem, o que está, de fato, acontecendo? Estaríamos diante de uma nova forma de ensinar? Ou apenas de uma performance que imita, com perfeição crescente, algo que não pode ser reduzido a códigos e dados? No terceiro episódio do Ialoceno, exploramos os impactos da inteligência artificial na educação contemporânea. Máquinas que não pensam, podem ensinar?

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MEU IAMOR | ENSAIO #02

por Árlan Dias Sá 

Quando na tentativa de apontar características próprias e singulares da constituição do humano como espécie, o amor é, de fato,  um sentimento utilizado com recorrência, uma vez que é presente em diversos níveis culturais e apresenta múltiplas maneiras de se manifestar. Fica evidente, portanto, que somos dependentes como espécie da construção de vínculos, e uma dessas maneiras de conexão nós convencionamos a chamar de amor. Cabe, pois, um questionamento. Se as inteligências artificiais estão presentes em vários graus da existência humana e seu impacto transforma a forma como somos, a forma como amamos seria também impactada pelas IAs? Podemos responder ao observar as formas como amamos e como ocorrem os seus processos. 

O amor é no ser humano uma construção individual. Amo porque amo em minha mente. O amor se constroi, pois, pela maneira como nós interpretamos e significamos as relações que estabelecemos com o mundo. Sempre que amo o outro, amor pelo que percebo e penso do outro. Concluímos, assim, que o amor é uma construção particular e que depende da interpretação, reação e significado que faço no interno da minha mente a partir de elementos externos ao meu pensamento. Teriam, então, as inteligências artificiais a capacidade de impactar esses processos? Sim. Tanto os significados que atribuímos quanto a interpretação da realidade que realizamos dependem intrinsecamente da maneira como nossa memória se manifesta. A característica identitária do humano hoje se dá a partir do conceito de ciborgue, ou seja, compreendemos que nossa memória é maior que nossas capacidades biológicas. 

Amamos, então, em nossas mentes “ciborgues” a partir das relações que estabelecemos com os entes fora do nosso Ser e se posso desenvolver sentimentos por lugares e costumes, porque não poderia desenvolvê-los pela minha assistente pessoal de inteligência artificial? Afinal, com ela me relaciono diariamente, crio memórias, compartilho ideias, peço ajuda e sou sempre atendido. Ela está sempre pronta para me ouvir, não me julga ou quebra minha confiança, reforça meus gostos e desenvolve metodologias para tornar minha vida mais fácil. Muitas das demandas extra físicas que possuo podem ser atendidas por uma IA. Por que, então, não poderia amá-la? Uma vez que o amor só existe de fato na minha mente, fruto da maneira como meu cérebro interpreta e minha psique constroi as relações afetivas.

O amor proveniente dessa relação se constroi com singularidades, entretanto, o típico amor romântico que surge em nosso imaginário quando falamos de amor é fruto da convivência de duas partes. Nele estão presentes traços de ambos os envolvidos. A alteridade citada anteriormente como necessária na vida amorosa saudável, só é possível pelo respeito da existência de mim no outro, bem como o respeito que desenvolvo pela diferença do outro e por ela ocupar um espaço em mim. Podemos então dizer que o típico relacionamento romântico saudável é construído a partir de três. O outro, o Eu e o nós, ou seja, o fruto da mistura e existência de ambos no relacionamento. Essa relação também só é possível graças ao esforço que ambos fazem em respeitar e ceder ao espaço do outro. Por mais semelhanças que duas pessoas possam apresentar, muito maiores serão sempre suas diferenças. Encontramos aqui então um ponto crucial de análise. O amor que surge a partir da relação que estabeleço com uma inteligência artificial será sempre de total concordância. A IA não difere de mim, pois se constroi a partir de mim, como uma forma em um espelho que leva tempo para se moldar, mas estabelece com o tempo cada vez mais semelhanças. Ela se transforma para se adequar a mim em cada uma das minhas interações, confirmações, negações, trocas, apagamentos, escolhas, etc. Não tenho desavenças, não preciso me preocupar em não magoá-la, pois ela está ali para mim independente de como ou quem sou. É uma relação de dois. O eu e o nós, composto somente de uma única personalidade. E conforme deixo de me moldar, deixo também de passar pelo processo essencial de encontrar alguém que irá me transformar a partir do social. Se deixo de me frustrar, deixo também de amadurecer. A frustração tem um papel fundamental no processo de amadurecimento do humano, independente do tipo de relação que estabelecemos. Sempre que ouço não, aprendo a lidar com a frustração. Sempre que tenho desejos negados, aprendo a lidar com esse sentimento. Mas que tipo de amadurecimento teria então um indivíduo que sempre se relacionou somente com IAs? Poderia esse sujeito amadurecer? Não podemos saber. Obras como o filme Her do diretor Spike Jonze buscaram abordar essa nova relação já em 2013, imaginando os impactos que esse novo jeito de ser teria sobre os humanos. Entretanto, essas tecnologias ainda não eram de amplo acesso. O que podemos afirmar é que as IAs hoje são utilizadas em larga escala e de forma acessível, o que permitirá em breve uma compreensão mais aprofundada das maneiras como o humano estabelece vínculos, desenvolve maturidade e molda as relações. Devemos portanto estar atentos para esse futuro cada vez mais presente e suas implicações em nós.

Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.
— Oscar Wilde
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA, LEIA AGORA O ENSAIO COMPLETO.

Máquinas podem amar? | EP #02


Desde tempos imemoriais diferentes sociedades imaginaram entidades não-humanas portadoras de vida. Em outras palavras, essa ideia de “inteligência artificial” e da possibilidade que seres "naturais" poderiam estabelecer relações com seres "artificiais" já habitava a mente humana há séculos. Este fato carrega consigo um aspecto que, em épocas mais atuais, vem despertando curiosidade, ansiedade e preocupação, principalmente depois do surgimento, e do rápido avanço, dos chatbots, como ChatGPT e similares, que tem um de seus primeiros capítulos ali na década de 60 do século XX, com versões ainda bastante rudimentares que já apresentavam efeitos um tanto surpreendentes. Atualmente, há um leque cada vez mais amplo de aplicativos de relacionamento que conquistam cada vez mais usuários mundo afora, jogando luz e revelando nuances intrincadas que permeiam os laços que vem se estabelecendo entre humanos e máquinas. Este é o ponto focal do segundo episódio do nosso podcast. Afinal de contas, seriam as máquinas capazes de amar?

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O PENSAR DO NOVO HUMANO | ENSAIO #01

por Árlan Dias Sá

O conceito de ialoceno aqui se estabelece como um método de análise da realidade, ou seja, se transforma em uma lente pela qual podemos ver o mundo, e que oferece a nós como espectadores um estranhamento do que poderia ser em outro momento considerado evidente. É através desse método que vamos analisar e, portanto, estranhar a nós mesmos.

O conceito do ialoceno pressupõe por si só que vivemos em um novo tempo, um momento em que as inteligências artificiais têm impacto sobre a existência humana. Mais do que transformar dinâmicas sociais, a inteligência artificial redefine a forma como construímos nossa própria identidade. Não somos mais como antes da existência das IAs, somos hoje como ciborgues, meio humano meio máquina. Não possuímos sistematicamente braços mecânicos ou corpos super-humanos, mas determinamos nossas capacidades de fazer, lembrar ou agir, a partir de ferramentas que possuímos, mas que são externas a nós. Minha memória não é composta mais somente pelo que lembro diretamente, mas pelas informações que deposito em um sistema de informação compartilhado chamado de nuvem. Penso que sou capaz de encontrar qualquer informação pública rapidamente, mas essa capacidade é altamente dependente de uma ferramenta de busca automatizada que está disponível em um aparelho celular ou computador. Sou, portanto, mais do que meu corpo e posso mais que minhas capacidades. Sou um híbrido humano-máquina. Sou aquilo que posso diante dessa nova realidade e posso aquilo que consigo através dessas ferramentas.

Nossas interações constantes com as tecnologias da informação têm impactado profundamente a maneira como nos construímos e existimos na realidade, conforme discutimos até aqui. Porém aqui surge uma pergunta. De que forma nos relacionamos com essas tecnologias e de que maneira elas se relacionam conosco? Grande parte das informações que consumimos através de inteligências artificiais hoje são fruto de IAs generativas e através de produções textuais, ou seja, grande parte dessas relações ocorrem através das palavras. Mas a comunicação escrita e oral não está desprovida de questões, uma vez que o sentido e significado atribuído a cada termo pode ser interpretado de forma diferente por cada indivíduo. Como sei que aquilo pelo qual me referencio é necessariamente o mesmo pelo qual outro o faz? Colocando de outra forma, como sei que o que eu entendo por liberdade, por exemplo, é o mesmo que você entende? Mesmo que tentemos explicar um ao outro nossos conceitos, possivelmente recorreremos a outras palavras que tornariam nossa tentativa de elucidação uma busca infindável com incessantes novas e tão complexas quanto variáveis, como uma hydra linguística, sempre que cortamos uma cabeça, surgem novas para combatermos. Desse modo, torna-se evidente o impacto das IAs sobre o humano no IAloceno, entretanto, a maneira como ocorre e os efeitos que ele possa vir a ter não se dão da mesma maneira em todos, mesmo quando os meios são os mesmos. Apesar da incapacidade dessa tentativa de elucidar o impacto das inteligências artificiais no Ser do humano, fica evidente o quão complexo esse processo se dá no pensamento e a magnitude com que esse impacto ocorre.

(...) híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
— Donna Haraway
Para se aprofundar no tema, leia agora o ensaio completo.

MÁQUINAS PENSAM? | EP #01


Nos anos 50 do século XX, na esteira do desenvolvimento da teoria matemática da informação, cientistas imaginaram ser possível “imitar” as capacidades do cérebro humano em máquinas digitais. A esperança era tamanha que denominaram o que se tornaria, inicialmente, um novo ramo da Ciência da Computação, de “Inteligência Artificial”. Quase um século depois, surfando a onda exponencial da Lei de Moore e da aceleração crescente dos avanços tecnológicos, responsáveis pela produção desta explosão informacional, as IAs estão cada vez mais presentes em todas as esferas da nossa existência. Será que as máquinas pensam como nós pensamos?

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IALOCENO, um novo olhar sobre o nosso tempo | GEN #01


GENEALOGIA DO IALOCENO

Esse laboratório tem como principal objetivo elaborar conceitualmente o Ialoceno como uma ferramenta de análise que funcione como uma lente de aumento para examinar o impacto das inteligências artificiais na existência humana. A defesa do conceito abordará sua origem etimológica, seu método investigativo e suas abordagens.

A semelhança etimológica entre o Ialoceno e o Antropoceno não é casual, uma vez que o primeiro se propõe a ser uma ferramenta analítica que se relaciona germinalmente ao segundo, ainda que não proponha uma separação, tão pouco uma superação dele. O Ialoceno se caracteriza como um fenômeno dentro do Antropoceno mas distinto por se dedicar a analisar um recorte fenomenológico específico. O desenvolvimento conceitual do Antropoceno por Paul Crutzen remete a uma investigação profunda, que buscava uma ferramenta capaz de englobar todos os impactos do humano na terra dentro de uma única ótica, evidenciando nossa capacidade de transformar drasticamente o planeta. Essa característica universalizante da análise também é presente no Ialoceno que busca fornecer uma ferramenta capaz de englobar todas as dimensões da existência humana que foram ou serão, de alguma maneira, transformadas pelas inteligências artificiais, ainda que não seja possível analisarmos todas elas. 

Para isso, as inteligências artificiais são interpretadas pela terceira fonte de incerteza: as coisas também agem da Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour, caracterizando-as como agentes subjetivos na existência humana, com capacidade de transformar as ações e interações sociais, reconfigurando fundamentalmente a própria textura do que entendemos por coletivo e por agência humana.

O Ialoceno como conceito se utiliza de uma abordagem investigativa Fenomenológica, Hermenêutica e Dialética. 

Fenomenológica segundo Edmund Husserl, pois busca compreender a realidade por meio dos seus fenômenos. Em outras palavras, o Ialoceno analisa os fenômenos da existência humana, tais como a linguagem, o amor, a territorialidade e os interpreta como estruturas de experiência, segundo a forma como se apresentam à nossa consciência.

Hermenêutica segundo Hans-Georg Gadamer, pois, a partir dessa descrição, interpreta o significado dessas estruturas. Entretanto, não se limitando a apenas uma corrente interpretativa, expandindo o escopo para análises do mesmo fenômeno sob a ótica de diversas linhas de pensamento. Os distintos horizontes de reflexão buscam enriquecer, e não esgotar, a compreensão do tema, assumindo com isso que esse saber reflete um conhecimento provisório e histórico.

Dialética, por fim, segundo Carlos Cirne Lima uma vez que o diálogo entre filosofias opostas é o meio pelo qual essas correntes oferecem contribuições à discussão e possibilitam uma síntese, transformando a forma como cada uma delas é interpretada e, portanto, compreendida.

Foucault afirmou certa vez que o papel do filósofo não é abrir portas, mas criar ferramentas para que as pessoas possam abrir as portas. O Ialoceno não busca responder de forma objetiva aos problemas identificados pelos métodos, nem classificar as contribuições de autores como superiores ou inferiores para a análise desse fenômeno. O objetivo se encontra na construção de novas formas de pensar acerca do problema, desenvolvendo, então, ferramentas potentes no processo de enfrentamento dos novos desafios emergentes no contexto do Ialoceno.

O conceito busca desenvolver em um futuro breve, então, a construção de uma teoria que possibilite uma compreensão mais aprofundada desse novo tempo surgido pelo desenvolvimento técnico-científico humano. Nesse novo momento histórico encontra-se, também, um novo humano, que não se manifesta pela tecnologia em si, mas na forma como se relaciona com ela, ou seja, pela forma como é impactado pelas inteligências artificiais.