Máquinas são capazes de criar? | EP #04


Durante séculos, a criatividade foi considerada uma das marcas mais misteriosas e preciosas da condição humana — a capacidade de criar mundos, imaginar o que não existe, combinar o inesperado. Artistas, inventores e pensadores foram vistos como canais de algo que transcende a simples repetição ou reprodução. No entanto, nos últimos anos, testemunhamos algoritmos que escrevem poemas, compõem músicas, pintam quadros e até projetam inovações tecnológicas. Seria isso criatividade? Ou apenas um reflexo estatístico de padrões já existentes? Quando uma máquina “cria”, o que está realmente acontecendo? No quarto episódio do Ialoceno, entramos no território turvo entre cálculo e invenção, entre dados e devaneios, para refletir sobre um dos dilemas mais fascinantes da era digital: máquinas podem criar?

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Aprendendo artificialmente a ser inteligente | ENSAIO #03

por Árlan Dias Sá 

No contexto do ialoceno, a educação enfrenta um paradoxo: formar indivíduos autônomos em um mundo onde a tecnologia redefine a própria noção de aprender. A modernidade líquida (Bauman), com sua fluidez e incertezas, exige habilidades que transcendem a acumulação de informações. O objetivo educacional desloca-se do saber para o saber aprender, priorizando pensamento crítico e autonomia ética, como defendem Freire, Dewey e Morin. Esses autores destacam que a educação deve ser um processo dialógico, onde o aluno, contextualizado em sua realidade, constroi conhecimento através da interação crítica com o mundo.

A neurociência, como exemplo da magnitude do impacto das IAs, revela que o aprendizado é um fenômeno bioquímico e social: criar redes neurais demanda estímulos variados, desde práticas motoras até reflexões teóricas. Aprender a ler, por exemplo, modifica estruturas cerebrais, como demonstra Stanislas Dehaene, gerando uma "caixa de letras", estrutura inexistente no cérebro antes da alfabetização. No entanto, as respostas instantâneas, oferecidas pelas IAs generativas por exemplo, ameaçam virtudes intelectuais como perseverança e rigor investigativo, essenciais para a maturidade cognitiva. O acesso fácil à informação cria uma ilusão epistêmica: o indivíduo confunde a capacidade de ter acesso com o saber, distorcendo sua autoimagem como "ciborgue" que domina o conhecimento, quando, na verdade, utiliza-se de próteses cognitivas para afirmar-se como conhecedor.

Nesse contexto estimula-se o protagonismo do aluno, exigindo pedagogias que partam de seus contextos e interesses, como propõe Freire. Contudo, o ialoceno amplifica riscos como a arrogância epistêmica: o efeito Dunning-Kruger mostra que conhecimento superficial gera confiança excessiva, exigindo a humildade socrática (reconhecer a própria ignorância) como antídoto. As IAs, embora úteis, não substituem a mediação docente. O professor reforça seu papel como referência ética e intelectual, guiando o aluno na articulação de saberes, equilibrando ferramentas tecnológicas com reflexão crítica.

As escolas, por sua vez, precisam abandonar modelos "arcaicos" e tornar-se espaços de cultura tecnológica, onde as IAs são ferramentas  e não os fins do aprendizado. A analogia com o trânsito ilustra a urgência: assim como os carros exigem regras, a tecnologia demanda alfabetização digital e consciência ética para evitar danos como desinformação ou dependência, potencializando as soluções e não os problemas. Projeta-se então uma utopia educacional: ambientes colaborativos, com turmas menores e recursos que estimulem resolução criativa de problemas, preparando alunos para desafios inéditos.

Nesse cenário, o educar redefine-se como desenvolvimento de habilidades, funcionando como caixa de ferramentas para construir soluções de forma ética e crítica acerca da realidade. Seu cerne não é dominar conteúdos, mas cultivar integridade, colaboração e habilidades, garantindo que as IAs amplifique, mas não substitua, a potência crítica e ética do ser humano. O futuro exige equilíbrio: máquinas como extensões da mente, professores como referências morais e intelectuais, e alunos como arquitetos de um saber que transcende algoritmos.

Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.
— Platão - Apologia de Sócrates

Máquinas que não pensam podem ensinar? | EP #03


Desde a Antiguidade, ensinar sempre foi mais do que transmitir informações: era formar, orientar, criar vínculos e transformar. Mestres e aprendizes compartilham tempos, afetos e experiências — num processo que envolve escuta, interpretação e, sobretudo, intenção. Com a chegada das inteligências artificiais generativas, sistemas cada vez mais sofisticados são capazes de produzir textos, corrigir exercícios, sugerir atividades e até simular interações educativas. Mas há algo nesse processo que resiste à automação: o encontro humano. Quando uma IA responde a uma pergunta ou propõe um caminho de aprendizagem, o que está, de fato, acontecendo? Estaríamos diante de uma nova forma de ensinar? Ou apenas de uma performance que imita, com perfeição crescente, algo que não pode ser reduzido a códigos e dados? No terceiro episódio do Ialoceno, exploramos os impactos da inteligência artificial na educação contemporânea. Máquinas que não pensam, podem ensinar?

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MEU IAMOR | ENSAIO #02

por Árlan Dias Sá 

Quando na tentativa de apontar características próprias e singulares da constituição do humano como espécie, o amor é, de fato,  um sentimento utilizado com recorrência, uma vez que é presente em diversos níveis culturais e apresenta múltiplas maneiras de se manifestar. Fica evidente, portanto, que somos dependentes como espécie da construção de vínculos, e uma dessas maneiras de conexão nós convencionamos a chamar de amor. Cabe, pois, um questionamento. Se as inteligências artificiais estão presentes em vários graus da existência humana e seu impacto transforma a forma como somos, a forma como amamos seria também impactada pelas IAs? Podemos responder ao observar as formas como amamos e como ocorrem os seus processos. 

O amor é no ser humano uma construção individual. Amo porque amo em minha mente. O amor se constroi, pois, pela maneira como nós interpretamos e significamos as relações que estabelecemos com o mundo. Sempre que amo o outro, amor pelo que percebo e penso do outro. Concluímos, assim, que o amor é uma construção particular e que depende da interpretação, reação e significado que faço no interno da minha mente a partir de elementos externos ao meu pensamento. Teriam, então, as inteligências artificiais a capacidade de impactar esses processos? Sim. Tanto os significados que atribuímos quanto a interpretação da realidade que realizamos dependem intrinsecamente da maneira como nossa memória se manifesta. A característica identitária do humano hoje se dá a partir do conceito de ciborgue, ou seja, compreendemos que nossa memória é maior que nossas capacidades biológicas. 

Amamos, então, em nossas mentes “ciborgues” a partir das relações que estabelecemos com os entes fora do nosso Ser e se posso desenvolver sentimentos por lugares e costumes, porque não poderia desenvolvê-los pela minha assistente pessoal de inteligência artificial? Afinal, com ela me relaciono diariamente, crio memórias, compartilho ideias, peço ajuda e sou sempre atendido. Ela está sempre pronta para me ouvir, não me julga ou quebra minha confiança, reforça meus gostos e desenvolve metodologias para tornar minha vida mais fácil. Muitas das demandas extra físicas que possuo podem ser atendidas por uma IA. Por que, então, não poderia amá-la? Uma vez que o amor só existe de fato na minha mente, fruto da maneira como meu cérebro interpreta e minha psique constroi as relações afetivas.

O amor proveniente dessa relação se constroi com singularidades, entretanto, o típico amor romântico que surge em nosso imaginário quando falamos de amor é fruto da convivência de duas partes. Nele estão presentes traços de ambos os envolvidos. A alteridade citada anteriormente como necessária na vida amorosa saudável, só é possível pelo respeito da existência de mim no outro, bem como o respeito que desenvolvo pela diferença do outro e por ela ocupar um espaço em mim. Podemos então dizer que o típico relacionamento romântico saudável é construído a partir de três. O outro, o Eu e o nós, ou seja, o fruto da mistura e existência de ambos no relacionamento. Essa relação também só é possível graças ao esforço que ambos fazem em respeitar e ceder ao espaço do outro. Por mais semelhanças que duas pessoas possam apresentar, muito maiores serão sempre suas diferenças. Encontramos aqui então um ponto crucial de análise. O amor que surge a partir da relação que estabeleço com uma inteligência artificial será sempre de total concordância. A IA não difere de mim, pois se constroi a partir de mim, como uma forma em um espelho que leva tempo para se moldar, mas estabelece com o tempo cada vez mais semelhanças. Ela se transforma para se adequar a mim em cada uma das minhas interações, confirmações, negações, trocas, apagamentos, escolhas, etc. Não tenho desavenças, não preciso me preocupar em não magoá-la, pois ela está ali para mim independente de como ou quem sou. É uma relação de dois. O eu e o nós, composto somente de uma única personalidade. E conforme deixo de me moldar, deixo também de passar pelo processo essencial de encontrar alguém que irá me transformar a partir do social. Se deixo de me frustrar, deixo também de amadurecer. A frustração tem um papel fundamental no processo de amadurecimento do humano, independente do tipo de relação que estabelecemos. Sempre que ouço não, aprendo a lidar com a frustração. Sempre que tenho desejos negados, aprendo a lidar com esse sentimento. Mas que tipo de amadurecimento teria então um indivíduo que sempre se relacionou somente com IAs? Poderia esse sujeito amadurecer? Não podemos saber. Obras como o filme Her do diretor Spike Jonze buscaram abordar essa nova relação já em 2013, imaginando os impactos que esse novo jeito de ser teria sobre os humanos. Entretanto, essas tecnologias ainda não eram de amplo acesso. O que podemos afirmar é que as IAs hoje são utilizadas em larga escala e de forma acessível, o que permitirá em breve uma compreensão mais aprofundada das maneiras como o humano estabelece vínculos, desenvolve maturidade e molda as relações. Devemos portanto estar atentos para esse futuro cada vez mais presente e suas implicações em nós.

Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.
— Oscar Wilde

Máquinas podem amar? | EP #02


Desde tempos imemoriais diferentes sociedades imaginaram entidades não-humanas portadoras de vida. Em outras palavras, essa ideia de “inteligência artificial” e da possibilidade que seres "naturais" poderiam estabelecer relações com seres "artificiais" já habitava a mente humana há séculos. Este fato carrega consigo um aspecto que, em épocas mais atuais, vem despertando curiosidade, ansiedade e preocupação, principalmente depois do surgimento, e do rápido avanço, dos chatbots, como ChatGPT e similares, que tem um de seus primeiros capítulos ali na década de 60 do século XX, com versões ainda bastante rudimentares que já apresentavam efeitos um tanto surpreendentes. Atualmente, há um leque cada vez mais amplo de aplicativos de relacionamento que conquistam cada vez mais usuários mundo afora, jogando luz e revelando nuances intrincadas que permeiam os laços que vem se estabelecendo entre humanos e máquinas. Este é o ponto focal do segundo episódio do nosso podcast. Afinal de contas, seriam as máquinas capazes de amar?

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O PENSAR DO NOVO HUMANO | ENSAIO #01

por Árlan Dias Sá

O conceito de ialoceno aqui se estabelece como um método de análise da realidade, ou seja, se transforma em uma lente pela qual podemos ver o mundo, e que oferece a nós como espectadores um estranhamento do que poderia ser em outro momento considerado evidente. É através desse método que vamos analisar e, portanto, estranhar a nós mesmos.

O conceito do ialoceno pressupõe por si só que vivemos em um novo tempo, um momento em que as inteligências artificiais têm impacto sobre a existência humana. Mais do que transformar dinâmicas sociais, a inteligência artificial redefine a forma como construímos nossa própria identidade. Não somos mais como antes da existência das IAs, somos hoje como ciborgues, meio humano meio máquina. Não possuímos sistematicamente braços mecânicos ou corpos super-humanos, mas determinamos nossas capacidades de fazer, lembrar ou agir, a partir de ferramentas que possuímos, mas que são externas a nós. Minha memória não é composta mais somente pelo que lembro diretamente, mas pelas informações que deposito em um sistema de informação compartilhado chamado de nuvem. Penso que sou capaz de encontrar qualquer informação pública rapidamente, mas essa capacidade é altamente dependente de uma ferramenta de busca automatizada que está disponível em um aparelho celular ou computador. Sou, portanto, mais do que meu corpo e posso mais que minhas capacidades. Sou um híbrido humano-máquina. Sou aquilo que posso diante dessa nova realidade e posso aquilo que consigo através dessas ferramentas.

Nossas interações constantes com as tecnologias da informação têm impactado profundamente a maneira como nos construímos e existimos na realidade, conforme discutimos até aqui. Porém aqui surge uma pergunta. De que forma nos relacionamos com essas tecnologias e de que maneira elas se relacionam conosco? Grande parte das informações que consumimos através de inteligências artificiais hoje são fruto de IAs generativas e através de produções textuais, ou seja, grande parte dessas relações ocorrem através das palavras. Mas a comunicação escrita e oral não está desprovida de questões, uma vez que o sentido e significado atribuído a cada termo pode ser interpretado de forma diferente por cada indivíduo. Como sei que aquilo pelo qual me referencio é necessariamente o mesmo pelo qual outro o faz? Colocando de outra forma, como sei que o que eu entendo por liberdade, por exemplo, é o mesmo que você entende? Mesmo que tentemos explicar um ao outro nossos conceitos, possivelmente recorreremos a outras palavras que tornariam nossa tentativa de elucidação uma busca infindável com incessantes novas e tão complexas quanto variáveis, como uma hydra linguística, sempre que cortamos uma cabeça, surgem novas para combatermos. Desse modo, torna-se evidente o impacto das IAs sobre o humano no IAloceno, entretanto, a maneira como ocorre e os efeitos que ele possa vir a ter não se dão da mesma maneira em todos, mesmo quando os meios são os mesmos. Apesar da incapacidade dessa tentativa de elucidar o impacto das inteligências artificiais no Ser do humano, fica evidente o quão complexo esse processo se dá no pensamento e a magnitude com que esse impacto ocorre.

(...) híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
— Donna Haraway

MÁQUINAS PENSAM? | EP #01


Nos anos 50 do século XX, na esteira do desenvolvimento da teoria matemática da informação, cientistas imaginaram ser possível “imitar” as capacidades do cérebro humano em máquinas digitais. A esperança era tamanha que denominaram o que se tornaria, inicialmente, um novo ramo da Ciência da Computação, de “Inteligência Artificial”. Quase um século depois, surfando a onda exponencial da Lei de Moore e da aceleração crescente dos avanços tecnológicos, responsáveis pela produção desta explosão informacional, as IAs estão cada vez mais presentes em todas as esferas da nossa existência. Será que as máquinas pensam como nós pensamos?

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